OUSAR UM NOVO HABITAR DA TERRA

A Galeria Camões, na Embaixada de Portugal em Brasília, inaugurou em 26 de maio 2021, a exposição “Oréades”, dos artistas Gabriela Albergaria e Marcelo Moscheta. A mostra integra a Programação Cultural da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia e é uma realização da Embaixada de Portugal e do Camões – Centro Cultural Português em Brasília. “Oréades”, designação mitológica, foi escolhida em 1824 pelo botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius para classificar a região fitogeográfica brasileira do “cerrado”, é o tema que inspira os trabalhos da artista portuense e do criador paulista, patentes da Exposição que ficará aberta ao público até 19 de agosto de 2021. O texto do nosso colaborador, Viriato Soromenho-Marques, que aqui se apresenta está integrado no Catálogo da Exposição – coordenado por Alexandra Pinho que também co-organizou a exposição -, que conta ainda com contributos de Luís Faro Ramos (Embaixador de Portugal no Brasil), João Fernandes (diretor artístico do Instituto Moreira Salles) e uma entrevista entre Luiz Pedro de Melo César, professor na FAU/UnB, e os artistas Gabriela Albergaria e Marcelo Moscheta,

A crise global do ambiente transformou-se no dealbar da terceira década do século XXI numa realidade esmagadora e omnipresente. O avassalador e duradouro impacto da humanidade sobre o Sistema-Terra deu até origem a uma nova época geológica: o Antropoceno. O que está em causa é uma constelação convergente de veementes sintomas de que a estrutura funcional do ambiente que nos era familiar se encontra num duplo e turbulento processo de ruptura e de busca por um novo equilíbrio. De repetente, todos percebemos que a matéria do mundo não é passiva e obediente aos nossos desígnios e comandos. Compreendemos que nas dinâmicas da mudança planetária, a crença na nossa demiúrgica fortaleza se desvaneceu ao chocar frontalmente com o regresso da essencial evidência da nossa mortalidade, individual e colectiva.

Não nos faltam vocábulos para traduzir o nosso espanto perante as consequências do uso irresponsável do nosso poderio tecnocientífico. Ele traduz-se numa economia que troca uma efémera e mal distribuída prosperidade, pela transformação dos vitais serviços dos ecossistemas em lixo e entropia. Até hoje nenhuma inovação política, avanço científico, ou conversão moral foi capaz de servir como respaldo moderador e saber prudencial para abrandar e inverter o presente estado de guerra movido pela nossa ávida desmesura contra a fecunda fragilidade da nossa morada cósmica. A “emergência climática”, ou a extinção maciça da biodiversidade, traduzem-se no aumento exponencial do sofrimento humano. Multiplicam-se os refugiados ambientais, fugindo de lares devastados por megaincêndios, secas intermináveis, inundações diluvianas, ciclones arrasadores. 2020, revelou como a destruição dos habitats se traduz na proliferação de zoonoses, de saltos virais, que partindo de outras espécies animais, em extinção ou cativeiro, se espalham para os hospedeiros humanos. Nessa óptica, a colossal pandemia da COVID-19 não parece ser um evento inesperado, mas um acontecimento sombriamente inaugural.

Um dos avisos mais profundos e precoces do risco ontológico presente nesta agressiva actuação humana sobre o mundo natural – natureza, que desde o advento da Modernidade deixámos de respeitar como a matriz da nossa própria identidade humana – foi proferido em língua portuguesa. Foi seu autor José Bonifácio de Andrada e Silva, figura maior da inteligência universal, que continua a unir as suas duas pátrias, em ambas as margens do Atlântico. Numa intervenção, apresentada em 1823, no quadro da Assembleia Geral Constituinte do Império, José Bonifácio proferiu esta profética advertência: “ (…) nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente. E com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes, que favoreçam a vegetação e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso bello Brasil em menos de dois seculos ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Lybia. Virá então esse dia (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes commettidos.” (X)

Dois séculos depois do alerta de José Bonifácio, não é apenas o vasto Brasil, mas o inteiro planeta que se encontra em risco de se transformar em deserto inabitável para os filhos daqueles que por “erros e crimes” desprezaram a generosa e úbere natureza, essa casa comum para todas as criaturas. Sabemos bem como é longo o caminho da consciência para a acção, das palavras para os actos, mas se não queremos agonizar, como espectadores passivos e cúmplices do que teologicamente se poderia designar como a pulsão diabólica de impor a morte onde se deveria celebrar a vida, precisamos de agir para salvar o mundo e resgatar moralmente a nossa própria humanidade. Acção múltipla, colectiva, envolvendo indivíduos, regiões, cidades, Estados. Precisamos de reinventar a nossa habitação da Terra. É compulsória a cooperação a todos os níveis, em todas as geografias, para que o fio da vida, da “natalidade”, essa intensa expressão de Hannah Arendt para a corrente solidária de gerações, não se rompa. Para que exista chão, onde os vindouros possam erguer os seus sonhos, experimentar os seus fracassos e sucessos.

Um novo habitar da Terra, significa, como indica também José Bonifácio, ser capaz de reaprender o espanto pela beleza do mundo, libertar o calafrio do sublime que se eleva das coisas, forças e seres mais simples e profundos, que séculos de antropocentrismo sôfrego e cego obnubilaram e recalcaram. Não sobreviveremos sem restabelecer o triângulo helénico do belo, do bom e do verdadeiro. E para isso é necessário aprender a subtil e fundamental disciplina da escuta e da observação, nascida do respeito pelo esplendor que nos deu e sustenta a existência. É essa disciplina que Gabriela Albergaria e Marcelo Moscheta nos oferecem, pela sua fina e criativa leitura da paisagem do Bioma Cerrado, que serve de nicho ecológico à capital federal brasileira. Na anatomia fractal das folhas fossilizadas, no entrelaçar de ramos e troncos, na cartografia dos anéis de crescimento das árvores, é a habitação estética da Terra que se ousa e experimenta.

Viriato Soromenho-Marques

(X) Andrada e Silva, José Bonifácio, “Representação à Assembléa Geral Constituinte Legislativa do Império do Brasil” (1823), Santos, Typographia a vapor do Diario de Santos, 1886, pp. 26-27. http://www.obrabonifacio.com.br/colecao/obra/1112/digitalizacao/pagina/1

Créditos da Imagem: “Hiatos”, instalação de Marcelo Moscheta, fotografia de Jean Peixoto.

Publicado no Jornal de Letras em 2 de Junho de 2021

Subscribe
Notify of
guest
0 Comments
Inline Feedbacks
View all comments