QUARENTA E NOVE ANOS DEPOIS

Pertenço a uma geração de portugueses para quem o sabor da liberdade e a consciência da crise ambiental se encontram profundamente vinculados. O Dia Mundial do Ambiente, que hoje se comemora pela 49.ª vez, foi criado em plena Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano (1972), realizada em Estocolmo, sob o impulso de um saudoso Olof Palme, absurda e brutalmente assassinado em Fevereiro de 1986. Palme foi um dos derradeiros socialistas europeus que não trocava a prioridade da justiça pelo império do mercado. Foi também um estadista pioneiro a entender a gravidade da crise global do ambiente, como o seu discurso proferido nessa Cimeira o prova. Portugal esteve também representado em Estocolmo com uma delegação, chefiada pelo eng.º José Correia da Cunha (1927-2017), que é o inquestionável fundador da política pública de ambiente em Portugal. Convidado por Marcello Caetano para presidir à Comissão Nacional do Ambiente (1971), permaneceria no seu posto depois do 25 de Abril, só não tendo ido mais longe porque lhe faltava em ambição política o que lhe sobrava em competência profissional e zelo cívico. Menos de dois anos depois, aqueles que eram jovens como eu na altura do 25 de Abril tiveram o raro privilégio de serem lançados para a condição de testemunhas e modestos participantes numa acelerada mudança de rumo da história nacional.

Felizmente, a Revolução em Portugal não devorou os seus autores. A democracia constitucionalizou-se e o ambiente começou a ganhar relevo, tanto na acção das associações cívicas como nas políticas públicas. Julgo que a passagem do tempo acentua a justeza de enaltecer a autenticidade e o empenhamento de alguns nomes que ficaram ligados à construção dos fundamentos da intervenção do Estado no domínio ambiental. Gonçalo Ribeiro Telles (ministro entre 1981 e 1983) trazia o ambiente na sua visão do mundo e da vida, e no seu projecto político para Portugal (ver meu artigo, DN 14 11 2020). Recordo também a marcante passagem pelo governo de Carlos Pimenta (passou por 3 governos entre 1983 e 1987). Numa altura em que os meios eram escassos, a sua coragem e determinação ajudaram a fazer cumprir a lei e contribuíram para interditar o caminho ao lóbi do nuclear, que é tão perpétuo como o letal lixo que as centrais produzem. A luta por um Portugal que cuidasse do chão e do mar que herdámos das gerações passadas e que acolhesse os ainda não-nascidos, uniu cidadãos muito para além das tribos partidárias.

Quando olhamos para o Portugal de hoje magoa-nos a diferença com a primeira década e meia em que se comemorou o 5 de Junho. Na política oficial não parece existir um único nome que venha a ser recordado no futuro (pelo menos pelas boas razões). A miséria intelectual e moral da “elite” doméstica dos negócios e das redes de influência – que o Parlamento tem mostrado ao país, com a firme coordenação de Fernando Negrão, através das comissões de inquérito ao BES/NB – ajuda a perceber como chegámos aqui. Os governos deixaram-se encurralar numa lógica de servilismo ao dinheiro, mesmo que os direitos humanos e as leis sejam pisadas. Quando a política perde a sua alma, a democracia transforma-se numa caricatura. O poder nu, despido de uma ambição de futuro, apenas se serve a si próprio. Como nos poderemos admirar de hoje, este dia do ambiente, nos causar mais apreensão do que alento e confiança?

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias em 5 de Junho de 2021, p. 11

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