A Fundação Calouste Gulbenkian, depois de ter cortado todos os laços com o negócio dos combustíveis fósseis, transformou-se na instituição mundial (não apenas no âmbito das organizações filantrópicas) a instituir o maior prémio monetário de âmbito internacional para distinguir personalidades ou instituições que se distingam à escala global na luta contra o maior problema que a nossa espécie enfrenta: as alterações climáticas. O Prémio Gulbenkian para a Humanidade (Gulbenkian Prize for Humanity), com um valor de 1 milhão de euros, assume-se como um galardão mundial anual para o ambiente que suplanta o próprio Prémio Nobel. Dificilmente se poderia imaginar um mais auspicioso início, do que a atribuição da primeira edição deste Prémio a Greta Thunberg, a jovem estudante e activista climática sueca, que através do seu exemplo de firmeza, lucidez e integridade se transformou num vivo ícone moral e cívico para milhões de jovens e adultos em todo o planeta.
Já por quatro vezes (a primeira das quais num ensaio datado de 13 de Março de 2019) me debrucei no Jornal de Letras sobre o rico significado da acção climática de Greta Thunberg. Aproveitando o ensejo proporcionado pelo Gulbenkian Prize for Humanity, gostaria de identificar aquelas que, na minha perspectiva, constituem as principais chaves de leitura da sua causa e do seu sucesso público.
Dizer os Paradoxos pelos seus nomes
A nossa civilização está fundada num modelo económico que nos está a conduzir colectivamente a um beco sem saída. Kenneth Boulding, o pai da Economia Ecológica, já havia afirmado há décadas que quem acredita na possibilidade de um crescimento económico exponencial quando vivemos num planeta que, no essencial constitui um sistema fechado e finito, ou é louco ou é economista. Greta, contudo, tem o dom de dizer o essencial com uma serena firmeza, e com as palavras certas, que se movem como as centúrias de uma legião romana em marcha de aproximação ao inimigo. Com um extraordinário conhecimento da literatura científica sobre a crise ambiental e climática, Greta não se perde com as dificuldades que muitas vezes os académicos têm em descodificar os seus complexos modelos climáticos. Como a criança, ainda despida de preconceitos, do conto de Hans Christian Andersen (O Rei vai Nu), Greta tem denunciado com rigorosa candura a diferença entre as palavras e os actos no comportamento tanto dos governos como das grandes empresas. Contra a multidão mesquinha dos seus caluniadores (que agora engolem as críticas para não perderem valor de mercado…) a jovem sueca tem sido capaz de defender as suas teses, sem ficar presa a discursos escritos perante auditórios que seriam intimidantes para pessoas com muito mais idade e muito mais experiência. Um dos paradoxos fundamentais do nosso tempo, no que concerne às alterações climáticas, é a incapacidade de subordinar a agenda das mudanças políticas e económicas à urgência da degradação objectiva da situação ambiental e climática. Com um egoísmo que seria ridículo, se não fosse imoral e objectivamente criminoso, os governos (não estou a falar dos EUA ou do Brasil, que estão fora de qualquer escala decente de avaliação) subordinam esse combate urgente às suas tácticas de conquista e manutenção dos pequenos poderes, enquanto as empresas prometem mudar, mas só depois de terem rentabilizado os seus activos ambiental e climaticamente tóxicos.
Uma proposta de paz entre gerações
Outro aspecto da acção de Greta não tem sido suficientemente valorizado, e por isso gostaria de o destacar. Se não soubermos resgatar o mercado para o serviço das sociedades, destruindo a coluna vertebral do neoliberalismo que comanda a guerra da economia contra o nosso futuro comum, ele continuará a deixar no seu caminho multidões de excluídos. Os “ganhos” de rendimento para os mais pobres, de que os arautos do hipercapitalismo se vangloriam, são pagos pelo ambiente e pelos bens comuns, e rapidamente se desvanecem, como o aumento exponencial da pobreza extrema causado pela pandemia da COVID 19 bem o demonstra. Bem sei que é imensa e variegada a constelação de excluídos (trabalhadores assalariados tornados obsoletos pela inovação tecnológica ou pela deslocalização empresarial, mulheres, comunidades rurais, povos indígenas, entre muitos outros), contudo, surpreendo-me sempre quando reparo que o carácter potencialmente explosivo da exclusão de gerações futuras, na sua quase integralidade, não é devidamente contemplado como enorme ameaça à paz e coesão das sociedades.
Esta “economia que mata”, citando agora o Papa Francisco, está a conduzir a história para um modelo de “U” invertido, Neste momento, depois de gerações de subida vertiginosa, que nem as guerras mundiais quebraram, estamos num breve planalto, prestes a entrar numa quada ainda mais célere na sua vertigem. Isso já é evidente na perda de rendimento, de estabilidade laboral e de oportunidades de emprego para os trabalhadores até aos 40 anos. Quando a isto juntarmos as perdas de qualidade de vida causadas pela aceleração das catástrofes naturais resultantes da crise ambiental e climática antropogénica, penso que só um milagre – que na manutenção dos actuais cenários de futuro será impossível – poderá impedir que o protesto das gerações mais novas, a quem o futuro foi roubado pelas elites das gerações precedentes, escale para formas cada vez mais agressivas e violentas.
Uma suave antecipação do que poderão ser os campos de violento protesto civil nas ruas das cidades do final da actual década e da década de 2030 foi dado no célebre discurso de Greta, em que a frase “How dare you…” (“como se atrevem…”) ficou a ressoar nos ouvidos de muita gente. Contudo, Greta é uma embaixadora amável e sábia das gerações futuras. Ela sabe que só em conjunto – gerações e povos -poderemos combater, com alguma probabilidade de sucesso o maior desafio existencial que alguma vez a humanidade enfrentou. Por isso ela anunciou que esse milhão de euros, outorgado pela Gulbenkian, será integralmente investido no apoio de quem luta “na linha da frente” pela defesa do ambiente e clima, seja ou não jovem.
Possa o Prémio Gulbenkian para a Humanidade, ajudar a voz firma, mas serena e pacífica, de Greta a tornar-se mais poderosa e influente na prática. Se continuarmos a arrastar os pés, até os caluniadores de Greta dela terão saudades. Que ninguém subestime a potencial força destrutiva da juventude, se esta desistir de qualquer forma de esperança e de diálogo, ao compreender que o egoísmo, em cumplicidade com a apatia de sucessivas gerações anteriores, lhe minaram a estrada que têm de percorrer em direcção a um futuro cada vez mais minguado.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 29 de Julho de 2020, página 11.
“Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida.”
Fernando Pessoa “O Marinheiro”