A LUZ DE ROOSEVELT NÃO ILUMINA MADRID

Até dia 13 de Dezembro decorrerá em Madrid a 25.ª Conferência das Partes (COP25). Trata-se do encontro anual dos países signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC). A turbulência política e social que varre o Chile, obrigou a transferir essa reunião para a capital espanhola.

A vantagem de não comparecer em Madrid é a de sermos poupados à espessa hipocrisia da maioria esmagadora dos países – abro uma excepção para os representantes dos países arquipelágicos do Pacífico, que já estão com água pelos tornozelos, e são absolutamente sinceros na sua exigência por mais eficácia no combate às alterações climáticas. Daqui a um ano, chegaremos ao fim do primeiro quinquénio do Acordo de Paris (AP). Será nessa altura que se farão os balanços e se renovarão as promessas. Mas, desde já, ao fim de 4 anos é possível afirmar que até agora – tal como previ nas minhas crónicas no JL da altura – o Acordo obtido na capital francesa tem sido um colossal fracasso. Um compromisso internacional que pretende limitar a subida da temperatura média do planeta em relação ao período pré-industrial em 1,5ºC (já estamos na casa dos 1.1ºC de subida), mas que não tem conhecido outra coisa que não o aumento das emissões de gases de efeito de estufa (GEE) com o consequente incremento da concentração de dióxido de carbono: em Maio de 2015, a concentração de CO2 na atmosfera terrestre era de 403, 96 ppmv (partes por milhão de volume). Em Maio de 2019, este valor aumentara já 11, 68 partes para 415, 64 ppmv! Continuar a falar de um limite de 1,5ºC é um insulto à inteligência, quando estamos embarcados para uma rota catastrófica de 5 ou 6 graus centígrados até ao final do século…

Se olharmos para o último meio século identificamos apenas quatro períodos em que se registou uma redução anual das emissões de CO2: 1973-74/-2,4% (1.ª crise do petróleo); 1979-1980/ -0,4% (2.ª crise do petróleo); 1997-2000/-3,5 % (crises das economias asiáticas e das empresas digitais); 2007-2008/-2% (crash do sub-prime). Num mundo dominado pelo cego império da economia não deixa de ser uma triste imagem da impotência generalizada dos sistemas políticos verificar que a única limitação das alterações climáticas seja proveniente do regresso das “crises cíclicas do capitalismo”!

Se tudo correr de acordo com o calendário previsto, em Madrid marcará também presença a nova Comissão Europeia (CE), liderada pela senhora von der Leyen. Neste caso assistiremos ao exercício de uma hipocrisia mais subtil. Ao longo dos anos, a CE tem estabelecido uma apropriação mimética de alguma da iconografia política dos EUA. Em 2002, quando se pensava ser possível compensar os impactos negativos do euro sobre a democraticidade da UE com uma Constituição Europeia (malograda pelo voto negativo de franceses e holandeses em 2005) recorreu-se ao plágio da Convenção constitucional de Filadélfia (1787). Agora, a CE tem acenado com uma vigorosa intervenção durante os primeiros “100 dias” da sua vigência, copiando a famosa intervenção do presidente F. D. Roosevelt, no dramático período após a sua tomada de posse em 4 de Março de 1933, em plena derrocada da economia e do sistema financeiro norte-americano, na fase mais aguda da Grande Depressão, com 25% da população activa dos EUA entregue ao desemprego e à pobreza.

Se a comparação entre a Convenção de 2002 e a de 1787 era inapropriada, a comparação entre a futura acção da CE von der Leyen e a acção profundamente reformadora do Presidente Roosevelt – que nos primeiros 100 dias colocou em prática, entre muitas outras medidas, uma poderosa legislação sobre o sistema bancário que, apesar dos ataques do neoliberalismo ainda resiste em aspectos fundamentais, como a garantia federal aos depósitos até 250 000 dólares – roça a desonestidade intelectual.

Roosevelt reinventou o federalismo norte-americano, fazendo da intervenção do governo federal um factor fundamental para limitar um sistema financeiro que, nas suas palavras de candidato presidencial em 1932, deixara “de estar ao serviço do desejo nacional, para se tornar num perigo [para a segurança colectiva da economia e da sociedade]”. Quando Roosevelt entrou em cena em 1933, a dívida pública era de 20% em relação ao PIB dos EUA. Quando Roosevelt morre em 1945, nos últimos meses da II GM, os EUA tinham uma dívida de 112% do PIB, mas tinham superado a Grande Depressão, disciplinado o capitalismo financeiro, devolvido a esperança aos norte-americanos, liderado a guerra contra os imperialismos alemão e nipónico, e criado um sistema internacional centrado em torno das Nações Unidas e das suas agências, que continua a ser, ainda hoje, uma barreira entre nós e a pura e simples barbárie.

A CE faria melhor em ser mais humilde. Não passa de um instrumento da nova “balança do poder europeia”, representada no primado do Conselho Europeu. Gere uns magros 1% do PIB europeu (contra 46% do PIB europeu que é administrado pelos orçamentos nacionais). Serve de polícia do directório do Conselho Europeu para manter a disciplina orçamental dentro dos Estados, impondo uma visão da ordem económica urdida por teóricos de terceira categoria e implementada por políticos que não ficarão sequer nos rodapés da história.

É verdade que perante os EUA de Trump, a UE até parece fazer boa figura no que toca às alterações climáticas. Contudo, as reduções europeias de emissões de GEE mais fáceis já foram feitas. Agora, para conseguir atingir a neutralidade carbónica em 2050 seria mesmo necessário mudar de rumo. Seria necessário um autêntico governo europeu e políticas como as de Roosevelt. O actual modelo de governo da UE é incompatível com o futuro. Se não chegarmos a essa conclusão com a cabeça, acabaremos por pagar duramente com o corpo todo.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 4 de Dezembro de 2019, p. 28

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