MADRID OU A VERGONHA DE PROMETEU

O que está a acontecer na COP 25 de Madrid é muito mais do que parece. Metaforicamente falando, poderíamos dizer que nas últimas quatro décadas confirmámos o que apenas uma elite de argutos observadores, com olhos de águia, havia percebido antes: não precisamos de temer o que vem do espaço. Nenhum asteróide constitui ameaça provável à existência da Terra. Na verdade, a única ameaça existencial à vida (ainda) exuberante no único planeta habitado conhecido do Universo somos nós, a espécie humana. A COP 25 reproduz também outra figura da nossa iconografia ocidental. Pela 25.ª vez, Sísifo, desta vez corporizado pela imensa maquinaria da diplomacia ambiental, transportará a sua pedra penitencial até ao alto de mais uma cimeira, para a deixar rolar de novo, numa repetição ritual e aparentemente inútil.

Habitamos hoje numa sociedade desordenadamente global, que já não depende da política no sentido liberal clássico. A ideia de que o Estado democrático está revestido de um poder legítimo, que pode vencer ameaças existenciais e transformar a realidade para melhor, perde brilho em cada COP. Os grandes actores globais, o sistema financeiro mundial e as grandes multinacionais não estão sequer presentes à mesa das negociações. Limitam-se a passear pelos corredores. O motor do mundo contemporâneo reside numa inércia económica, autorizada pela capitulação cúmplice das políticas públicas, desde o início dos anos 80. É esta inércia que constitui o novo e inexorável rosto do destino. Em Madrid, o imperativo da urgência face ao perigo ergue-se, para logo sucumbir à tragédia do inexorável fado do crescimento exponencial. Essa inércia que devora a Terra e todas as suas criaturas, tudo arrastando na sua voragem caudalosa.

A Modernidade terminal em que estamos mergulhados nasceu sob o signo do humanismo confiante. Para alguns, a crença no homem tornou-se numa nova teologia. É verdade que tivemos alguns avisos. Pico della Mirandola, alertava-nos em 1486: a liberdade humana tanto pode ascender à mais alta elevação do espírito, como pode degradar-se abaixo das mais primitivas criaturas. Em 1881, Nietzsche advertia-nos para os enormes desafios deste tempo da “Morte de Deus”, temendo que acabássemos por sacrificar a liberdade recente à tutela de uma multidão de ídolos medíocres e cruéis. Acertou em cheio: o Prometeu emancipado cedo deu lugar ao Prometeu agrilhoado a novos ídolos: a Nação, a Raça, a História, o Estado, o Mercado… Em 1945, com o Holocausto, pensávamos que o humanismo moderno havia batido no fundo. Contudo, o século XXI, dominado sem alternativa pelo ídolo do Capital, o mais tenaz e virulento de todos, ameaça desaguar no colapso planetário, incluindo a extinção da nossa espécie. Se tal ocorrer, ninguém cá estará para testemunhar se algum deus verterá lágrimas pelo crepúsculo de Prometeu. Talvez o homem não seja mais do que um breve erro e uma frágil ilusão divina…

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 7 de Dezembro de 2019, página 27.

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