No vocabulário da longa história política do Ocidente não faltam conceitos para qualificar essa nuvem humana, pintada em amarelo e verde, que deixou atrás de si um mar de ruínas na Praça dos Três Poderes, em Brasília. O que observámos foi o resultado de um ataque de “bárbaros”, a razia de uma “turba”, a devastação de uma “multidão acéfala”, as pilhagens de uma “caterva”. Poucos de entre os desordeiros terão alguma vez ouvido falar de Montesquieu, e ainda menos da sua obra de 1748, que consolidou a ideia da separação e equilíbrio dos poderes legislativo, executivo e judicial, que tem servido de modelo aos Estados modernos. Mas os atos têm uma mensagem, até quando aqueles que os praticam se limitam a ser os seus cegos instrumentos. A atual destruição pelo populismo neofascista da invenção moderna dos regimes representativos é feita sob o amparo das novas tecnologias de lavagem ao cérebro, orquestradas por algoritmos de inteligência artificial, que têm autonomia para martelar em mentes recetivas, através das redes sociais, uma conformidade que transforma a mera opinião, primeiro em certeza, e depois em dogma digno de adesão fanática, completamente insensível à objeção de factos e argumentos.
Mas não nos enganemos. O que aconteceu agora em Brasília, como o que sucedeu há dois anos em Washington, é, apesar da gravidade, apenas uma consequência, um sintoma de uma doença que não é visível a olho nu. Para identificar a sua causa, diagnosticando a raiz profunda dessa patologia política, temos de recuar quase 3 séculos, até ao aparecimento das primeiras constituições modernas. Seja na constituição federal dos EUA (1788), veja-se James Madison, seja na constituição francesa de 1793, com Condorcet, seja num plano apenas teórico, com Kant (1795), o que vemos é uma preferência pelo conceito de república em detrimento do conceito de democracia. Isso significa que o poder soberano do Estado deriva do povo, sim, mas de um povo que não exerce o poder diretamente, como na ágora ateniense, onde, no mesmo exercício, se poderiam decidir obras públicas, fazer leis, ou condenar cidadãos indesejáveis ao ostracismo. O conceito de república manifesta a mediação fundamental, que distingue os regimes modernos das democracias antigas: o poder do povo é exercido indiretamente através de representantes, oriundos do povo, eleitos pelo povo e perante o povo responsáveis, no quadro transparente do espírito e da letra de uma lei fundamental. Nos grandes textos fundadores do final do século XVIII é desenhado o perfil ideal do representante como um cidadão competente nalguma ciência ou saber, mas, sobretudo, alguém que encara o serviço público como uma honra que lhe é concedida pelos seus concidadãos, e cujo cumprimento lhe granjeará um reconhecimento que perdurará para lá da sua existência física. Em Washington, Brasília, Bruxelas e muitas capitais europeias, que transbordam numa retórica democrática, ofensiva pelo conteúdo vazio, muitos eleitos pelo povo deixam-se colocar ao serviço das recompensas da riqueza. Antes da multidão enfurecida reclamar pela força bruta um poder que não lhe pertence, seria bom que os representantes prestassem contas, primeiro perante a sua consciência, sobre o modo como delapidaram, ou não, o capital de confiança e de esperança que lhes foi confiado pelos seus concidadãos. Uma “ética republicana”, praticada com autenticidade, pode ser a última linha de defesa contra o triunfo da anarquia niilista.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 14 de janeiro de 2023, página 9.