NA SOMBRA DO INVERNO NUCLEAR

A tragédia da imperfeição humana reside no contraste entre a tendência para criar problemas bicudos e a escassez do talento para os resolver de modo satisfatório. O chanceler Konrad Adenauer tinha uma formulação menos lisonjeira para esta incómoda característica da condição humana. Dizia ele: “Tendo em vista que Deus limitou a inteligência do homem, parece injusto que Ele não tenha também limitado a sua estupidez”. Na verdade, a desmesura da ignorância e da imprudência abundam na situação de ameaça permanente em que vivemos desde o início da invasão russa da Ucrânia, há quase um ano. O fator central, que mesmo responsáveis políticos e militares tendem a subestimar, é a entrada de toda a comunidade internacional num território novo, com perigosas ameaças sem precedente. Nem no tempo da guerra-fria – quando existia muito mais gente em lugares de decisão com uma cultura dos riscos associados a uma guerra entre potências nucleares – vivemos um período tão longo de conflito envolvendo, diretamente (Rússia) e indiretamente (EUA, Reino Unido e França), potências equipadas com arsenais nucleares. O caso mais dramático durante a guerra-fria durou 12 dias (a crise dos mísseis de Cuba, de 16 a 28 de outubro de 1962). A enorme tensão foi então desfeita através de um compromisso, sem mortandade. Na Ucrânia, pelo contrário, todos os dias morrem centenas de jovens soldados e civis, sem qualquer perspetiva de termo das hostilidades.

Se o comportamento passado é o maior preditor do comportamento futuro, então escasseiam as razões para confiarmos em que haverá talento, no derradeiro segundo antes da meia-noite, para evitar o mergulho no abismo. Esta guerra não teve geração espontânea, mas foi, pelo contrário, preparada por décadas de incompetência diplomática, surdez estratégica, e miopia política em grau extremo. Quem não soube manter a paz quando tal era fácil, dificilmente será capaz de a restaurar quando em ambos os lados da barricada são os tambores de guerra que se impõem. A escalada do patamar convencional para o nuclear tático, e deste para o nuclear intermédio, ou até estratégico, pode ser decidida num par de horas em que o ardor da raiva venceria a frieza do cálculo. De acordo com dados atualizados a16 de janeiro pela Federation of American Scientists, a Rússia e os EUA possuem 90% das ogivas nucleares mundiais, respetivamente, 4 447 e 3 708. Em agosto, a revista Nature Food elaborou um cenário sobre as consequências de uma guerra aberta entre Washington e Moscovo. O resultado seria diabólico: 360 milhões de pessoas morreriam pelo impacto direto das bombas de hidrogénio (fusão nuclear) sobre as capitais e cidades mais importantes. O pior chegaria depois através do “inverno nuclear”, que poderia matar nos dois anos seguintes até 5 mil milhões de pessoas em todo o globo (mesmo nos países não envolvidos diretamente no conflito), em consequência do arrefecimento planetário brusco e duradouro provocado pela concentração, nas camadas mais altas da troposfera e mais baixas da estratosfera, de 150 milhões de toneladas de fuligem, gerada pelas destruições maciças. Os sobreviventes enfrentariam a fome decorrente do fracasso das colheitas e das pescas, o frio, as doenças, o caos decorrente do colapso dos sistemas e serviços complexos e interdependentes em que assenta a vida civilizada. Nesta guerra o que está em causa não é a vitória ou a derrota de uma das partes, mas evitar que todos percamos tudo.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 21 de janeiro de 2023, página 10.

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