O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que irá servir essencialmente para acomodar nos próximos anos os financiamentos que se esperam da UE, não parece ter merecido um elementar escrutínio ético. Analisemos, sumariamente, que princípios éticos são recomendáveis na perspectiva da ética pública, não apenas para um documento como o PRR, mas para a avaliação mais geral de políticas públicas
Olhando para os fenómenos actuais de má governação, percebemos que uma das razões dessa patologia reside no vazio ético que obscurece a decisão de organizações públicas e privadas (mas sempre com impacto público). O escândalo da falsificação das emissões de gases poluentes no sector automóvel só foi possível pela irresponsabilidade moral e política de dirigentes empresariais de topo, assim como pela conivência de governos e administrações públicas, podendo isso indiciar um crime de corrupção. Por outro lado, na complexa origem da crise que levou Portugal a solicitar um resgate financeiro em 2011 encontra-se, como um dos seus factores genéticos (e não como causa exclusiva), um longo processo de endividamento público, apenas possível pela negligência com que o interesse nacional no longo prazo foi encarado no processo de formalização de muitas parcerias público-privadas. Na gestão da crise da Eurozona, noutro exemplo ainda, é notória a insensibilidade ética dos decisores que desenharam os programas de resgate da chamada “troika” (formada pelo FMI, CE e BCE) perante os efeitos socialmente devastadores de políticas económicas, que continuam a carecer de suficiente validação tanto nos seus fundamentos teóricos como na qualidade dos seus resultados materiais efectivos.
Dois Princípios
Se quisermos melhorar a atmosfera social de confiança, indispensável para a qualidade de vida dos cidadãos – sobretudo num horizonte de agravamento das dificuldades e desigualdades sociais causadas pela pandemia – é fundamental afirmar valores básicos que se encontram em processo global de regressão. Para isso teremos de apostar na visibilidade e no fortalecimento – no quadro da razão pública – de dois princípios essenciais que podem ser testados como pontes operacionais entre a ética e os processos de decisão envolvidos no ciclo de vida das políticas públicas. São eles, respectivamente, o princípio do fortalecimento da coesão social e o princípio da salvaguarda do futuro. Pelo primeiro, entende-se a necessidade de todos os institutos legais e decisões práticas assumidas deverem ter em conta o seu impacto e as suas consequências para e sobre a coesão, solidariedade e robustez da sociedade onde se inserem. Pelo segundo princípio, que foi introduzido no final do século XVIII por pensadores como Jefferson, Burke e Kant, esclarece-se que nenhuma decisão actual deverá omitir as consequências sobre as condições de possibilidade existencial e os direitos dos vindouros. Uma geração não deve transformar em inferno o mundo onde as gerações seguintes vão nascer e (sobre) viver.
Os dois princípios que propomos são inspirados, em particular, no enorme contributo de Thomas Jefferson para transportar a ética para o interior não apenas da produção, mas também da avaliação das políticas públicas. A justiça entre gerações surge na correspondência com James Madison, em 1789 e 1790. Jefferson tem perfeita consciência de que o tema é absolutamente inédito na história do pensamento político e filosófico em geral. A sua proposta implicava uma crítica directa a duas fundamentais áreas de política pública: a política constitucional e a política orçamental. Jefferson considerava que em ambos os casos os mecanismos de revisão constitucional e a limitação temporal da dívida pública deveriam ser submetidos a um critério de responsabilidade geracional (minha crónica JL de 05 06 2013).
O futuro sequestrado
Sublinhe-se que estes princípios são comuns tanto à ética como à política, mas apenas se tornarão operacionais quando transformados em leis jurídicas que os permitam configurar-se em rotinas de avaliação, habilitadas por procedimentos de monitorização concreta. No caso português, em áreas de política pública com impacto no longo prazo, como é o caso das finanças públicas ou a política energética, tem existido um recurso, embora mais latente do que consciente, a estes princípios de ética intergeracional. O já criticado esquema de endividamento público no longo prazo, resultante de ruinosas parcerias público-privadas na política de transportes e infra-estruturas, ou a ruinosa opção por produtos financeiros, como é o caso dos swaps, prejudicando fortemente o sector empresarial do Estado, são disso exemplos marcantes (C. Moreno, 2010, Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro; P.T. Pereira, 2012, Portugal: Dívida Pública e Défice Democrático). Já no que à política energética diz respeito, o modo como o Estado português licenciou projectos de prospecção e exploração de combustíveis fósseis, ou pretende agora suscitar a mineração do lítio sob o imperativo do combate às alterações climáticas, sem atender a outros interesses e valores, parece não só desrespeitar os princípios de justiça intergeracional, mas também a própria legislação de salvaguarda ambiental em vigor.
Estes dois princípios éticos são particularmente susceptíveis de serem a base para a elaboração de roteiros de avaliação de boas políticas públicas, em todas as áreas, já que dispõem de uma natureza geral e são transversais no seu alcance. Contudo, a sua acuidade é ainda maior quando o que está em causa são políticas e instrumentos de política de alcance estratégico e de âmbito interdepartamental, assim como escolhas visando o financiamento da economia em geral e dos serviços sociais em particular. Nesse caso, a coesão social e a salvaguarda das gerações futuras é de valor primordial. Se é verdade, que quando um governo se endivida em demasia, está a deixar um fardo pesado para ser pago pelos que ainda não nasceram, o que é a crise ambiental e climática senão o mais cruel exemplo de uma dívida ontológica lançada contra o futuro pela irresponsabilidade moral e política das elites contemporâneas (minha crónica JL, 05 09 2019)? Não me parece que uma leitura atenta do PRR resulte num saldo abonatório no que concerne ao respeito pelos dois princípios fundamentais referidos. Um elenco de medidas, quase uma lista de compras, não chega para densificar eticamente uma estratégica.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras de 7 de Abril de 2021