NEM SINAL DE TÉDIO

Passaram mais de 30 anos sobre a publicação do famoso artigo de Francis Fukuyama na revista The National Interest (Verão de 1989) onde se analisava e advogava um radioso “fim da história” para a humanidade. Ele traria a plena realização das possibilidades evolutivas da nossa espécie, coincidindo com uma economia liberal completamente globalizada. Seria um mundo onde o desejo consumista dos cidadãos obrigaria os Estados iliberais, seguindo o exemplo do governo comunista chinês da altura, a adoptar os princípios da economia de mercado. A política, no sentido de graves decisões sobre qualitativas mudanças de rumo, seria substituída por uma eficiente gestão tecnocrática dos pequenos ruídos (o ambiente seria um deles) que ainda perturbassem o funcionamento de um sistema perfeitamente oleado. Fukuyama acreditava que na sociedade pós-histórica, o maior problema remanescente seria o do “tédio” (boredom)…

Há muito que nem o próprio Fukuyama acredita na sua hipótese de 1989. Contudo, ela é útil como “cenário de controlo” dos problemas de 2021. Aquilo que falhou redondamente nestas três décadas está à vista de todos. O sentimento dominante no nosso tempo não é o tédio, mas sim a angústia. A enorme classe média global, anunciada em 1989, deu origem a um crescimento exponencial da desigualdade, à escala global e nacional. A inovação tecnológica incrementou a produtividade, mas não fomentou o tempo livre (como propunha o próprio Keynes há quase um século). Pelo contrário, a robotização e a Inteligência Artificial estão a transformar, sobretudo para as novas gerações, o mais modesto trabalho assalariado num privilégio pelo qual se justifica uma “guerra de todos contra todos”. Os problemas ambientais, tratados então com arrogante negligência, transformaram-se numa intratável emergência ontológica que torna possível um colapso civilizacional nas próximas décadas. No entanto, pior do que aquilo que falhou no profético milenarismo de Fukuyama, foi aquilo em que ele acertou. O capitalismo neoliberal domina em todo o planeta, usando punhos de renda ou luvas de aço, consoante as circunstâncias. A sua Internacional reúne-se anualmente em Davos, para dar testemunho público do verdadeiro governo mundial. A política foi arrastada para a irrelevância. Depois de uma década e meia de actividade intensa, em que a principal tarefa dos políticos “modernos”, da esquerda e da direita moderadas, foi destruir tudo o que desde as décadas de 1930 e 1940 tinha sido construído para regular o capitalismo financeiro, os governos entraram em discreta velocidade de cruzeiro.

A política transformou-se num pandemónio incapaz de estar à altura de compreender os desafios mundiais, e ainda menos de lhes dar uma resposta cabal. Basta olhar para a mediana imediatista da nossa política doméstica, ou ver como a presidência de Biden se ressente da profunda patologia norte-americana, sem esquecer a estridente cacofonia que transforma a UE numa entidade impotente e sem alma, na altura em que ela mais necessária seria perante a pandemia e a crescente urgência social. Contudo, nas recentes eleições da Gronelândia, ganhou o partido que, em nome do ambiente e da saúde pública, se opõe às multinacionais que querem aproveitar o degelo causado pelas alterações climáticas, para explorar as suas riquezas minerais. A grande política hibernou. Só a poderemos acordar se não abdicarmos, na mais modesta escala que seja, da acção política como legítima defesa.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 10 de Abril de 2021, página 11.

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