OUTRO PLANETA TERRA: DA EXUBERÂNCIA À AGONIA

Por um daqueles mecanismos associativos que trabalham no âmago da nossa memória, recordo-me com clareza da rua, ladeada por uma muralha histórica de Setúbal, onde, ainda muito jovem adolescente, me apercebi da beleza numérica da data desse dia: 7 de Julho de 1970 (7/7/1970). Evoco esta recordação, não para ilustrar a persistência de qualquer sortilégio pitagórico, mas para constatar que o mundo, em que o meu jovem “eu” se passeava, já não existe. Não se trata da mera constatação da mudança como o único permanente, como diria Heraclito, mas sim de perceber como neste último meio-século o planeta Terra sofreu a sua mais acelerada e qualitativa transformação em muitos milhões de anos, podendo a causa dessa metamorfose ser atribuída a uma única e singular causa: o incansável metabolismo da nossa espécie, transformando a complexa pluralidade da Natureza em homogénea simplicidade, isto é, em mercadorias consumíveis, energia, calor, lixo e entropia.

Desbaratámos o Sistema-Terra

Pouco antes de ter começado a escrever este artigo, analisei o que se está a passar nos EUA. Enquanto nos estados do Oeste mais interior, como o Colorado, Utah, Montana e Wyoming, uma frente gélida fez baixar o termómetro em 33 ºC, em menos de 24 horas, nos 12 estados do Oeste marítimo, em particular, Washington, Oregon e Califórnia, uma centena de incêndios de proporções gigantescas já consumiu dois milhões de hectares, destruiu cidades inteiras, matou um número indeterminado de pessoas e colocou meio milhão de habitantes (de um total de 4,2 milhões) do Oregon a fugir pelas suas vidas, à frente de chamas que ninguém consegue apagar. O mega-incêndio florestal português de 15 de Outubro de 2017, que surpreendeu os especialistas mundiais pela sua velocidade de alastramento (19 000 hectares por hora) parece hoje pequeno em comparação com os imensos incêndios que nestes últimos 3 anos devastaram a Suécia, a Rússia, a Austrália, os EUA, e, como sempre, o Brasil. Em 7 de Julho de 1970 o mundo era outro: a população mundial somava 3,7 mil milhões de almas, menos de metade dos actuais 7,8 mil milhões de humanos, e a atmosfera era de facto a de um outro planeta. Os grandes incêndios não eram possíveis, nem os grandes fenómenos meteorológicos extremos, porque em 1970, as alterações climáticas ainda poderiam ter sido evitadas. A concentração do dióxido de carbono era apenas de 326 partes por milhão (ppm). Em Julho de 2020 já atingiram uns absurdos 414 ppm! Para experimentar uma situação idêntica na estrutura química da atmosfera, teríamos de recuar milhões de anos na história da Terra, muito antes da existência da nossa espécie.

Neste mês de Setembro abundam os relatórios sobre este Planeta irreversivelmente alterado pela nossa acção colectiva. António Guterres prefaciou um estudo sobre o estado do clima, envolvendo um consórcio científico, no âmbito das Nações Unidas. Para o próximo quinquénio (2020-2024) existe uma probabilidade de 24% de a meta máxima do Acordo de Paris de 2015 (que sempre considerei, nas páginas do JL, um devaneio irrealista e irresponsável) ser transgredida, em pelo menos um desses anos: uma temperatura média de 1,5º C superior à temperatura média de referência do período pré-industrial de 1850-1900. Por seu turno, a maior ONG ligada ao estudo e à protecção das espécies e habitats ameaçados, publicou o seu Relatório – Living Planet Index – sobre o estado da biodiversidade global em 2020: Entre o famoso ano de 1970 e 2016, as populações de mamíferos, de aves, de anfíbios, répteis e peixes diminuíram 68%. O caso mais assustador – provando que por este caminho estamos à beira de transformar a Terra, este oásis cósmico de vida, num deserto – é o das regiões subtropicais da América, onde o massacre das espécies atingiu a cifra de 94% das populações existentes em 1970.

“A Era da Desordem”

Não deixa de ser curioso que tenha sido o Deutsche Bank, uma entidade financeira que tem sido um contribuinte líquido para alavancar a devastação da natureza em todo o planeta, a propor, em mais um relatório de Setembro, uma antevisão da década de 2020-2030: A Era da Desordem, marcará o fim da globalização neoliberal entre 1980-2020 (a transformação de uma Terra exuberante, num planeta convulsionado e em crescente ebulição). Nos próximos 10 anos iremos assistir, de acordo com os estrategistas deste Behemoth bancário: ao agravar da rivalidade sino-americana; à hora da verdade da União Europeia (ou federalismo, ou fragmentação); a um agravar da desigualdade que acarretará um inevitável terramoto social; ao agravamento climático; ao crescimento explosivo de um abismo entre gerações…

Como se tudo isto não fosse já mais do que suficiente para nos entristecer e revoltar, o importante IEP (Instituto para a Economia e a Paz) de Sydney divulgou um exaustivo estudo prospectivo sobre o horizonte de 2050, subordinado ao elencar de uma lista de ameaças ao sistema internacional e à qualidade de vida, provocada pela degradação do equilíbrio ecológico mundial. O resultado é a verdadeira proclamação de um mundo sombrio, com aumento exponencial do sofrimento humano, e a diminuição das oportunidades para o belo, o verdadeiro e o bom. Alguns dados, para o leitor perceber que não estou a exagerar: Em 2050, 3,5 mil milhões de pessoas poderão sofrer de insegurança alimentar, 5, 4 milhões, já em 2040, viverá em 59 países onde a água será um recurso cada vez mais escasso, mais de mil milhões de pessoas, fugirá de Estados falhados e de países ecologicamente destruídos, vagueando como migrantes ambientais e climáticos, vivendo à mercê da violência dos senhores da guerra, que a destruição dos graus, mesmo básicos, de civilização sempre acarreta…

Certamente, todo este agónico processo poderá ser, sombriamente, acelerado. A tensão entre os EUA e a China pode escalar até ao patamar, antes impensável, de uma guerra nuclear. Se Trump voltar a ganhar a Casa Branca, como infelizmente parece provável, o desfecho da loucura que hoje, manifestamente, percorre o mundo poderá ocorrer por um golpe, através de uma fulminante síncope cardíaca, e não através de um longo e irreversível processo de esclerose generalizada. Sinto uma nostalgia pesada ao pensar em 1970, quando o futuro, não apenas o meu, mas o da humanidade inteira ao longo de gerações sucessivas, era uma certeza povoada de esperanças. Razão tinha Rousseau quando abriu o Livro I do Emílio com estas palavras certeiras: “Tudo está bem ao sair das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem…”. A bala que matou Deus, algures no século XIX, está agora a trespassar o sistema nervoso da Terra. Se não existir um sobressalto ético generalizado, que devolva à política, hoje venal e lamacenta, um sentido de decência e de propósito altruísta, essa bala só terminará o seu curso despedaçando-se contra o nosso próprio coração.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 23 de Setembro de 2020, página 28.

Subscribe
Notify of
guest
1 Comment
Oldest
Newest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
Paulo Rodrigues

“Mas o sábio caminha sem olhar para o lado, porque à direita está a verdade falsa, e à esquerda, a mentira verdadeira; uma e outra fruto do lado e do desvio, fruto sombrio da árvore do aniquilamento.”
Fernando Pessoa “Sakyamuni”