DUAS LIÇÕES DE VÉNUS

Causou sensação mediática a revelação da descoberta da molécula fosfina na atmosfera de Vénus, por parte de uma equipa multidisciplinar de cientistas. Contudo, mais do que uma descoberta trata-se da identificação de uma hipótese: a fosfina poderia (falta prová-lo!) ser um indicador da existência em Vénus de microorganismos elementares, capazes de sobreviver sem oxigénio. Sem retirar valor à nova hipótese, julgo que ela vale, sobretudo, por duas outras razões que ficaram ausentes das notícias: a constatação da imensa solidão humana no Universo; o que Vénus já nos ensinou sobre o futuro da Terra.

Na história da ciência e da mentalidade moderna, ao contrário do que a cultura mediática hoje supõe, reinava um quase consenso sobre a existência noutros planetas, não só de vida elementar, mas também de vida complexa com capacidades intelectuais semelhantes ou superiores às humanas. Bernard de Mandeville, acreditava, em 1686, que depois de aprendermos a navegar entre planetas, poderíamos chegar à Lua, e aos seus potenciais habitantes, como os Europeus chegaram às Américas depois da travessia do Atlântico. Richard Bentley, um teólogo admirador de Newton, acreditava, em 1692, num Universo superpovoado: “porque é que não poderão todos os outros planetas ter sido criados para usos semelhantes [aos da Terra] para os seus habitantes dotados de vida e entendimento?”. Até o sábio e prudente Kant, escreveu na sua Crítica da Razão Pura (1781), que estava pronto a apostar todos os seus bens em como “há habitantes pelo menos em algum dos planetas que vemos.” Para todos estes vultos, a fosfina de Vénus seria recebida como como um amargo certificado da nossa solidão ontológica no cosmos.

Por outro lado, Vénus é para a humanidade do século XXI o mais especial dos planetas. Quando o contemplamos, estamos a olhar para a imagem física de um futuro que, a todo o custo deveríamos evitar. Muito embora a ciência das alterações climáticas tenha nascido no século XIX, em particular com o sueco Svante Arrhenius (1896), a verdade é que foram os estudos de planetologia comparada desenvolvidos pela NASA, em particular pelo grande especialista em atmosfera venusiana, James Hansen, que deram um poderoso impulso à compreensão do perigo em que a vida na Terra embarcou a partir do momento em que baseámos a nossa economia na emissão desmesurada de gases de efeito de estufa para a atmosfera. Comparadas com as temperaturas dos desertos ardentes de Vénus, com a sua atmosfera ácida e hostil, com o provável cadáver dos seus oceanos evaporados, as representações místicas do Inferno, até seriam habitáveis. A fosfina de Vénus contém duas lições, que nem Newton ou Kant conheciam. Primeira, somos privilegiados por habitarmos a Terra, pois ela é um tesouro único no imenso Universo conhecido. Segunda, se continuarmos a transformar o Planeta azul numa imitação grotesca de Vénus, tamanha ingratidão provará que estamos mais perto dos microorganismos do que das criaturas inteligentes que, contra todas as provas materiais, nos gabamos de ser.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, 28 de Setembro de 2020, p. 8.

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Paulo Rodrigues

“Sei de um planeta onde há um senhor todo afogueado. Nunca cheirou uma flor. Nunca olhou para uma estrela. Nunca gostou de ninguém. Nunca fez senão contas. E, tal como tu, passa o dia a dizer, cheio de orgulho: ‘Eu sou um homem sério! Eu sou um homem sério!’ Mas aquilo não é um homem! Aquilo é um cogumelo!”
Antoine de Saint-Exupery “O Principezinho”