A ESPADA QUE FERE A LUZ

Os ataques mais corrosivos à credibilidade da ciência não nasceram com a pandemia de Covid-19. Há três anos, a federação das academias europeias de ciência, ALLEA, debateu a complexidade do problema que está longe de ser redutível à dicotomia positivista entre verdade e ignorância. Numa sociedade onde “a mentira organizada” é um ramo de negócio – como escreveu Hannah Arendt em 1967 – muitas campanhas para descreditar os esforços científicos sérios são efectuadas através de uma malévola manipulação que, por exemplo, visa desmobilizar a opinião pública e os parlamentos contra ameaças à saúde pública causadas por actividades industriais. Quem não se lembra das tenebrosas campanhas de desinformação da indústria tabaqueira, tentando “provar” a ausência de ligação entre o fumo do tabaco e o cancro? Quem ignora os rios de dinheiro dispensados pelas grandes petrolíferas para criar a ilusão de falta de consenso entre cientistas quanto à veracidade das alterações climáticas causadas pelo nosso modelo de civilização?

A ciência moderna é uma das mais espantosas aventuras do espírito humano. Começou na Europa saída do crepúsculo da Idade Média, e hoje é amplamente universal. As comunidades científicas falam uma linguagem comum, que lhes permite o debate organizado e metódico de ideias, a demonstração ou refutação de teses e teorias. Contudo, como criação humana, a ciência reflecte o conflito interno que percorre a alma da modernidade: o conflito entre uma ilimitada vontade de poder e a capacidade de reconhecer que o interesse humano deve ser moderado pelo crescente conhecimento da interdependência do mundo a que ele pertence. Foi o silvicultor e filósofo norte-americano, Aldo Leopold (1887-1948), quem melhor terá vislumbrado a dilaceração que habita no coração da ciência: por um lado, ela é “a lima que afia a sua [do humano] espada”. Por outro, a ciência é o “holofote que ilumina o seu universo”. Toda a tecnologia moderna e contemporânea manifesta essa espada cada vez mais afiada ao serviço do exclusivo interesse humano. A “espada” traduz-se numa actividade extractivista que tem esgotado os cardumes do mar, os minerais no subsolo, reduzido a biodiversidade a níveis alarmantes, esgotado os solos aráveis ao ponto da desertificação, alterado a atmosfera e o clima… A ciência como “holofote”, em sentido inverso, tem revelado a complexidade e beleza do nosso planeta, a admirável interdependência ecológica dos seres vivos, e dos ecossistemas, com os seus ciclos de energia e matéria. A espada, faz-nos olhar no espelho como conquistadores insaciáveis. A luz do holofote, em sentido inverso, revela que a nossa sobrevivência só será possível se formos os guardiões do equilíbrio planetário que temos vindo impiedosamente a destruir.

Na UE os cidadãos esperam que, em matéria de ciência, as políticas públicas se inclinem mais para a luz do que para a espada. Contudo, cresce o rumor de que a Comissão poderá ceder ao intratável lóbi do nuclear, apoiado por uma aliança de 7 países, com a França à cabeça. Se Bruxelas considerar que uma energia mãe das armas atómicas, causadora de catástrofes sanitárias, geradora de resíduos perigosos incontroláveis, incapaz de sobreviver sem pesados subsídios públicos, pode receber um estatuto de “energia alternativa” (como a solar ou a eólica), então bem poderemos – perante a UE como à entrada do Inferno de Dante – perder toda a esperança de que a luz possa sobreviver à espada.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 3 de Abril de 2021

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