Embora me tenha encontrado com Ana Gomes, em várias ocasiões públicas, nunca tive oportunidade de travar com ela uma conversa que possa considerar de âmbito pessoal. Por isso, a breve reflexão que aqui partilho com os leitores não é perturbada por nenhum laço de afecto. Confesso, também, que depois do falecimento inesperado de seu marido, o embaixador António Franco, apostaria na maior probabilidade da sua recusa de uma candidatura presidencial, hipótese que pairava no ar há já vários meses. Enganei-me. Ana Gomes é candidata. É fácil perceber o desconforto que esta decisão parece estar a causar. Há quem precise de recalcular e torturar as palavras para dizer uma coisa e o seu contrário. Carlos César, assumindo o tipo-ideal do militante partidário profissional, representa bem o desapontamento do primeiro perdedor com esta decisão de Ana Gomes: o aparelho do PS. Este gostaria que as semanas passassem mansas, se possível fechando as cortinas, até à reeleição de Marcelo.
O que me interessa é perceber o que motivou Ana Gomes a passar da intenção aos actos. Não encontro melhor explicação do que a combinação de duas virtudes, no sentido que lhe confere a ética aristotélica: a escolha da conduta intermédia entre dois extremos, um excessivo e outro imperfeito. A primeira virtude é a da generosidade. Ana Gomes terá consciência de que é próxima do zero a probabilidade de poder ganhar as eleições de 2021 (e demasiado prematuro para especular sobre as de 2026). Marcelo, aliás, partilha com Ana Gomes o facto de ambos olharem do alto de uma montanha para o vale onde se estendem as suas áreas políticas de origem. Ana Gomes vai dar muito mais do que irá receber destas eleições. Irá contribuir para que o debate político se enriqueça, dignificando com isso a magistratura presidencial em disputa. Ela impedirá que a campanha seja uma excursão para Marcelo, entre os candidatos por obrigação, e o novel candidato que irá espargir o venenoso ódio racial como agenda para o país. Teremos também, com velado desgosto de muitos, os temas incómodos da corrupção, dos paraísos fiscais, da necessidade de escrutinar a execução do Plano de Recuperação, o imperativo de ter uma visão própria para o futuro europeu. Espero também que não seja esquecida a calamidade crescente da crise ambiental e climática. Ao longo de décadas, Ana Gomes tem estado, por vezes quase sozinha, do lado certo da ética, rompendo silêncios que lhe seriam convenientes: ao ser o rosto de Portugal na defesa do povo timorense, na denúncia da invasão do Iraque e dos crimes de tortura cometidos pelos EUA, na defesa de Rui Pinto, contra uma visão farisaica de justiça. Ana Gomes não ignora o ordálio de Freitas do Amaral, abandonado com as dívidas de campanha, pelos “amigos” que o empurraram para a eleição de 1986. Contudo, recusando tanto a cobardia como a temeridade, ela avançou, mesmo sabendo os riscos financeiros e os incómodos pessoais de vária ordem de uma campanha independente. Inequivocamente, a segunda virtude de Ana Gomes é a da coragem.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 12 de Setembro de 2020, p. 16.
“Tenho estado a lutar há muito tempo para dizer adeus a algo, e essa luta é tudo o que realmente interessa. A história não está nas palavras; está na luta.”
Paul Auster “A trilogia de Nova Iorque”