THOMAS MORE: NAS RAÍZES UTÓPICAS DA NOSSA DISTOPIA

Thomas More publicou a Utopia em 1516

O PRIMEIRO equívoco que se pode tecer em torno do conceito de utopia reside, desde logo, na relação entre o nome e o conteúdo que ele significa. Apesar da palavra ser um neologismo inventado por um autor específico, Thomas More (1478-1535), seria incorreto considerar que a utopia apenas surgiu, no que à sua substância diz respeito, no século XVI, por via do livro que nos comunica as narrativas do ficcional navegador português Rafael Hitlodeu. Na verdade, em 1513, apenas três anos antes da publicação da obra do grande pensador inglês, Utopia, Maquiavel confessaria no manuscrito do seu póstumo livro fundamental, O Príncipe, o objetivo que o movia na escrita desse texto fundacional da ciência política: “ir direito à verdade efetiva do assunto” (andare drieto alla verità effettuale della cosa). Com isso, denunciava o Florentino todos os autores em matéria de assuntos políticos que trocavam a realidade objetiva da luta pela conquista e manutenção do poder político, pela sua imaginação, motivada por motivos éticos, religiosos ou ideológicos. Maquiavel tinha em mente os numerosos manuais de educação dos príncipes que circulavam no seu tempo, procurando incutir aos futuros governantes uma visão da coisa pública iluminada por preceitos e valores de edificação religiosa e moral. O Florentino referia-se a esses diferentes tipos de utopismo, existentes antes mesmo de More ter criado o conceito, considerando-os não apenas inúteis, mas muito perigosos pelas ideias enganadoras que transmitiam sobre a essência da política (1).

A filiação de Thomas More na tradição clássica, recuperada pelo humanismo renascentista a que More pertencia, não oferece margem para dúvidas, como tem sido demonstrado claramente por uma abundante literatura onde se destaca o contributo de eminentes académicos portugueses numa notável tradução portuguesa do imortal livro (2). O autor inglês, e ilustre amigo de Erasmo, foi um grande conhecedor da herança da Antiguidade clássica, não deixando na sua Utopia de imitar, mais a atmosfera do que o conteúdo, da escrita platónica, onde a procura de uma representação do mundo como deveria ser, e não como era, estava claramente presente. Apenas nessa medida, A República de Platão pode bem ser considerada como o antepassado das utopias clássicas, pré-modernas. Contudo, essa vinculação de More com a herança clássica é matizada. Os impactos das mudanças de um mundo em acelerada metamorfose não deixam de se fazer sentir nos temas da sua imaginária sociedade insular, começando pelo seu próprio ordenamento territorial e urbano, traindo, talvez, a influência de ideias recentes trazidas de Itália, em especial de Leon Battista Alberti (autor em 1485 de uma inovadora obra sobre urbanismo, De Re Aedificatoria). Também muito pouco conforme à mentalidade helénica antiga, é a função educativa que More consagra ao trabalho manual, que seria impensável para um ateniense clássico. Contudo, se comparamos no seu conjunto a obra do filósofo, estadista, e futuro Santo da Igreja Católica, com projetos utópicos posteriores, nomeadamente os de Campanella e Francis Bacon, é inegável que More não era ainda um pensador utópico totalmente moderno, pois os seus valores apresentavam-se numa espécie de híbrida encruzilhada entre os Antigos e os Modernos.

Deixar terras improdutivas justifica uma “guerra justa”

ENQUANTO PARA Platão os veículos da procura por uma cidade ideal eram de natureza essencialmente interna e persuasiva, implicando o recurso maciço à educação, à autodisciplina ética, à aprendizagem da boa argumentação, à melhoria das instituições políticas da cidade, para os modernos, como Descartes e Bacon, o motor essencial das suas visões idealizadas do futuro estava muito mais ligado ao modo como seria possível conhecer a natureza e utilizar esse saber para orientar a mudança social na direção a uma vida humana mais longa, confortável, previsível, e menos trágica. Para isso, seria indispensável operar uma verdadeira rutura epistemológica, traduzida nas palavras de Descartes pelo crepúsculo da “filosofia especulativa”, com a Segunda Escolástica, permitindo a sua substituição por uma “filosofia útil”, resultante da aliança entre conhecimento e manipulação da Natureza, entre ciência e técnica (3).

Para algumas leituras poderá parecer não muito evidente a plena filiação de More neste novo modelo de utopia de que ele foi o impulsionador. Contudo, uma leitura atenta da Utopia revela-nos claramente o modo como o pensador inglês vai utilizar o argumento tecnológico como a crucial fonte de uma justificação de legitimação política, que ao longo dos séculos seguintes vai ser decisiva para afirmar o poderio colonial e imperial dos povos europeus sobre os povos dos novos mundos desbravados pelos descobrimentos e conquistas. Com efeito, no Livro II, Rafael Hitlodeu explica como os habitantes da Utopia procedem no caso de serem obrigados, por excesso de população, a formarem colónias no exterior. Nesse caso, os colonizadores imporão as suas leis aos povos colonizados, ou pior ainda. “Quando os indígenas recusam as novas leis, expulsam-nos das fronteiras que eles próprios [os colonizadores vindos da Utopia] definem para si; contra os que opõem resistência recorrem à luta, pois consideram haver razões plenamente justas para uma guerra [iustitissimam belli causam], quando qualquer povo implantado num território dele não se serve, mas apenas preserva a propriedade, deixando-o improdutivo e ao abandono, proibindo o seu uso e a sua posse a outros que por lei natural (ex naturae praescripto) nele devem procurar subsistência.” (4).

Por outras palavras: para Thomas More, o que confere direito de posse legítima sobre um território não é a antiguidade da sua simples ocupação, mas a qualidade tecnológica do seu cultivo, tendo em vista o aumento da sua produtividade agrícola (ou extrativa). Na aurora da criação do Euromundo, e com a candura das alvoradas, surpreendemos aqui o futuro Santo da Igreja Católica a enunciar um princípio de superioridade tecnológica que acabaria, ao longo dos séculos seguintes, por despojar povos inteiros dos meios de subsistência, reduzindo-os à servidão ou condenando-os, mais tarde ou mais cedo, ao rápido extermínio ou à lenta extinção. É o estertor dessa utopia, levada ao seu limite extremo, que estamos a testemunhar e sofrer hoje na crise global do ambiente e clima. O rosto mais visível e horrendo da distopia a que chamamos Modernidade.


Notas

(1) Maquiavel, O Príncipe, tradução e notas de Diogo Pires Aurélio, Lisboa, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2008, XV, pp. 185-186.

(2) Thomas Morus, Vtopia, edição crítica bilingue, tradução e comentário de Aires A. Nascimento; estudo introdutório de José V. de Pina Martins, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, pp.516-517.

(3) Descartes, Discours de la Méthode pour bien conduire sa Raison, in : Descartes. Oeuvres et Lettres, Textes présentés par André Bridoux, Paris, Éditions Gallimard, 1953, pp. 125-179.

(4) Thomas Morus, op. cit., pp.516-517.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 27 de dezembro de 2023, página 30.

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