“TEMPESTADE AINDA”, OU VIVER NO PANDEMÓNIO

Em 1998 o Senado dos EUA debateu o controverso alargamento da OTAN, para o Leste europeu. A partir de 1994 acentuou-se a oposição de muito diplomatas norte-americanos. Eles pressentiam que o alargamento da OTAN, contra a vontade expressa da Rússia, seria um enorme risco para a paz europeia e mundial. O decano dos diplomatas, George F. Kennan (1904-2005), com a autoridade única da sua experiência e originalidade doutrinária, chamou-lhe um “erro fatal”. Entre 1995 e 1997 mais de 70 diplomatas escreveram a Clinton, tentando dissuadi-lo desse passo. Também académicos como Charles Kupchan e Michael Mandelbaum assinalaram os riscos, em especial na Ucrânia. Em Portugal, só me recordo de um sólido ensaio de Carlos Gaspar (Análise Social, 1995), onde se considerava o alargamento da OTAN “sem um acordo paralelo com a Rússia” como potencial fonte de conflito na Ucrânia. Nesse debate do Senado, Joe Biden considerou que o alargamento de 1999 significaria “mais 50 anos de paz”. Pelo contrário, o senador democrata de Nova Iorque, Daniel Patrick Moynihan (1927-2003) –um dos últimos intelectuais de renome no Congresso dos EUA – alertava: “Estamos a caminhar para dentro de históricas inimizades étnicas. Não temos noção daquilo onde nos vamos meter”. Em 1994 o senador publicara um premonitório ensaio (Pandaemonium. Ethnicity in International Politics), onde identificava os potenciais conflitos de raiz étnica e cultural, na Europa e noutras partes do mundo, capazes de levar a conflitos internacionais.

Lembrei-me de Moynihan ao ver a extraordinária peça do dramaturgo austríaco Peter Handke (n. 1942), Tempestade Ainda, em cena no Teatro Aberto (Lisboa). Handke (prémio Nobel da Literatura 2019) tem-se distinguido tanto pelo génio criativo, como pela coragem cívica, própria dessa espécie em vias de extinção no Ocidente, que são os intelectuais inconformistas. Gente que arrisca pensar pela sua cabeça, correndo o risco de rumar contra a corrente. Nascido numa zona rural da Caríntia, região austríaca fronteiriça da Eslovénia, Handke pertence a uma família da minoria eslovena. Como noutras suas obras, o dramaturgo realiza nesta peça uma evocação dos seus antepassados próximos, colocando-os na condição de personagens vivos e dialogantes no palco. Evoca-se a discriminação pela maioria de língua alemã, acentuada com o Anschluss de 1938, que obrigou os seus tios a dividirem-se entre a participação (e a morte) nas fileiras das tropas de Hitler, ou a resistência nas florestas como partisans. O pai biológico e o padrasto foram ambos soldados alemães. O segundo, é recordado por Handke pelo seu alcoolismo e pela violência contra sua mãe. O que esta peça evoca, com valor universal, é o sofrimento individual e familiar de seres humanos indefesos, naufragados nessa tempestade que é o pandemónio sangrento de uma Europa, cuja fronteiras são rasgadas pelas valas comuns dos campos de batalha e de extermínio.

A guerra da Ucrânia é mais um capítulo dessa grande tragédia. Os primeiros refugiados ucranianos partiram em 2014, do Donbass para a Rússia, quando a guerra civil começou. É verdade que Portugal é um dos 7 países que têm a felicidade de não sofrerem clivagens étnico-culturais internas e fronteiriças (ao lado da Dinamarca, Islândia, Japão, Luxemburgo, Holanda e Noruega). Mas isso não desculpa os nossos atuais “especialistas” na guerra europeia da preguiça de preferirem os preconceitos à espessura da história e dos factos.

Viriato Soromenho-Marques

Tempestade Ainda na Europa”, Diário de Notícias, 2 de março de 2024, página 11.

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