SABER ONDE ESTAMOS Além da crise e do Colapso

A literatura sobre o que hoje se designa como crise ambiental e climática tem uma raiz já antiga na nossa modernidade. Desde o início do século XIX, mesmo antes do conceito de ecologia ter sido introduzido por Ernst Haeckel (1866), personalidades marcantes como Alexander von Humboldt ou o luso-brasileiro José Bonifácio Andrada e Silva deixaram uma poderosa referência pioneira com as suas obras e vidas. Em 1902, na sua obra, A Ideia de Deus, o grande pensador portuense Sampaio Bruno, chamava ao progresso uma “ilusão de Tântalo”, conseguida “à custa do sofrimento, numa luta exterminadora” que devora as espécies naturais e desertifica as almas dos homens.i Como muitas vezes tenho escrito, também aqui no Jornal de Letras, os problemas ambientais têm entrado na cultura de massas, incluindo as políticas públicas por ela tão influenciadas, em ciclos sucessivos. A diferença hoje reside em dois factores novos, um material e outro conceptual. Objectivamente, nunca a situação ambiental apareceu tão profunda e rigorosamente diagnosticada, com cores sombrias e alarmantes. No plano conceptual, são claras as fissuras e a incerteza, que se traduzem numa vacilação quanto às categorias para definir o nosso tempo. Será a nossa situação planetária ainda classificável como “crise”, ou será que já entrámos numa zona de tempestuosa radical incerteza, mais adequada para ser designada como “colapso”?

Nem todas as crises terminam bem

Já em 1949, Bertrand Russell colocava a pergunta crucial: será que a nossa sociedade científica poderá estabilizar-se e sobreviver à sua própria dinâmica de expansão material? A resposta dependeria da nossa capacidade de enquadrar as dinâmicas disruptivas causadas por três factores críticos com verdadeiro impacto sistémico: a desmesura demográfica, o risco de guerra nuclear, e as agressões ao ambiente. Para Russell, o sulco cataclísmico deixado pelo impacto negativo do crescimento económico sobre os ecossistemas era iniludível: «Tanto a indústria como a agricultura num grau continuadamente crescente são desenvolvidas de maneiras tais que desperdiçam o capital de recursos naturais do mundo.»ii

A ideia de que há um limite para além do qual a produtividade da crise – entendida como oportunidade de inovação e superação num patamar de complexidade superior – se torna materialmente impossível e moralmente inaceitável perdeu-se nas tendências intelectuais maioritárias da modernidade. O optimismo tornou-se numa espécie de a priori na leitura da história. Esse optimismo une as escolas de pensamento mais díspares: desde os arautos do pós-humanismo do século xxi aos seguidores das mais diversas visões deterministas da história, entendida como um processo visando atingir a realização de um “programa”, seja ele o da emancipação universal (caída em desuso) ou o da sociedade de mercado globaliii.

Semelhante atitude, muito associada no terreno prático à ideologia do technological fix, de que a figura de Elon Musk é, ao mesmo tempo, ícone e caricatura. Trata-se da crença, muitas vezes ingénua, de que haverá sempre um dispositivo tecnológico para a resolução de qualquer problema, por muito gigantesco que este seja, contribuiu em muito para os processos de cegueira organizada que permitiram a acumulação negligenciada no espaço e no tempo dos factores e indicadores da crise ambiental, ao ponto de termos chegado a esta situação de grande vulnerabilidade à escala global em que hoje nos encontramos. Não surpreende, portanto, que tenha sido em torno do ambiente que a reflexão das ciências e do filosofar se tenham erguido em busca de uma nova visão capaz de devolver o conceito de crise ao seu significado original de alerta e urgência. Mas como poderemos nós designar uma crise que corre o risco, não de revelar a fibra mais heróica dos indivíduos e as capacidades de bom desempenho efectivo das instituições, mas de nos conduzir a um deserto de ruínas, ao silêncio mais abandonado que a Terra alguma vez escutou desde que é habitada por mulheres e homens? Como designar a crise ecológica, ambiental, climática, que parece ser mais crítica do que todas as outras que a antecederam ou que a acompanham?

Do défice de imaginação ao colapso

Um bom contributo para uma resposta a essa pergunta essencial foi dado pelo canadiano Thomas Homer-Dixon ao baptizar a nossa época como sendo caracterizada por um «défice de engenho» (ingenuity gap). Ao contrário do optimismo típico da tecnofilia, Homer-Dixon aconselha-nos a olhar com prudência para os nossos desafios contemporâneos, cuja grandeza e complexidade aconselham a uma atitude prudencial. Trata-se de uma espécie de corrida contra o tempo, entre problemas globais (sobretudo de âmbito ambiental e de risco tecnológico) ameaçadoramente reais e as potenciais respectivas soluções, possíveis mas ainda longe de serem efectivas. É uma corrida que ainda está por decidir, mas que, de momento, parece inclinar-se mais para o lado dos tortuosos problemas actuais do que das soluções que o futuro poderá, eventualmente, albergar para os mesmosiv.

Como poderemos, então, designar uma crise sem solução à vista, uma crise que pode mergulhar para dentro de si mesma, num processo de implosão com características e consequências imprevisíveis? Sem dúvida que a estas perguntas só poderemos responder com um outro conceito, o de «colapso». Jared Diamond e outros autores têm procurado, justamente, chamar a atenção para a natureza especial da crise ecológica. Uma crise que se transforma em colapso não pode ser absorvida por nenhuma lógica «optimista». Os colapsos de civilizações, tão atentamente estudados por Diamond num registo geográfico global e numa amplitude histórica várias vezes milenar, terminam em ruínas, em silêncio. São a vitória do mal e do nada sobre todas as justificações e teodiceiasv.

No seu limite mais radical, e tendo em conta tudo o que a investigação empírica nos oferece sobre o lastimável estado do planeta, a crise ecológica e climática global corre o risco de iniciar um irreversível processo em, cascata, com múltiplos “pontos de viragem” (tipping points), podendo arrastar a própria civilização humana, pela primeira vez a uma escala igual à do próprio planeta, para um abismo ontológico. Uma crise que, na verdade, seria a antecâmara do colapso.vi A presente pandemia de COVID-19 tem todas as características que a habilitam a ser considerada como sintoma de um eventual tipping point no processo de extinção maciça da biodiversidade, em curso. Se a situação é tão grave, como foi possível que não nos tenhamos entendido o suficiente sobre isso, gerando os consensos científicos e políticos indispensáveis para passarmos à acção decisiva, às medidas que possam evitar a ruptura? Como foi possível que a sociedade tecnológica e cientificamente mais avançada que o planeta já conheceu corra o risco de chegar demasiado tarde àquela incerta encruzilhada que separa a estrada da crise, daquela outra que conduz ao colapso?

O nome correcto para esta nossa época vertiginosa não é uma questão para intelectuais, mas uma urgência prática. Só percebendo onde nos encontramos é que poderemos esperar que possam surgir políticas públicas calibradas para a grandeza das tarefas. Não podemos temer perante as sombras que nos chegam do futuro. O debate aberto em 2000 pelo conceito de “Antropoceno” (Paul Crutzen) tem conduzido a outras visões mais inquietantes, como as de “Necroceno” (Justin McBrien, 2016), ou de “Adaptação Profunda” (Bendell, 2018). Não sabemos se já passámos o Rubicão que separa a crise do colapso. Contudo, não será com reservas mentais, afastando-nos de pensar com radicalidade, que iremos inspirar e apoiar as acções corajosas que darão a resposta prática sobre o ser e o não-ser do nosso futuro colectivo.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras edição de 21 de Abril de 2021


i Sampaio Bruno, A Ideia de Deus [1902] Porto, Livraria Chardron de Lello & Irmão — Editores, 1987, p. 341.

ii Russell, Bertrand (1949), «Can a Scientific Society be Stable?», Bristish Medical Journal, p. 1307.

iii Soromenho-Marques, V (2005) . «O Desafio da Pós-Humanidade», Metamorfoses. Entre o Colapso e o Desenvolvimento Sustentável, Mem Martins, Publicações Europa-América, p. 183 ss.

iv Homer-Dixon, Thomas (2003), “Ingenuity Theory: Can Humankind Create a Sustainable Civilization?”. https://homerdixon.com/ingenuity-theory-can-humankind-create-a-sustainable-civilization/

v Diamond, J. (2004), Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed, Nova Iorque, Viking.

vi Steffen, Will et alia (2018), “Trajectories of the Earth System in the Anthropocene”, Proceedings of the National Academy of Sciences, http://www.pnas.org/content/early/2018/07/31/1810141115).

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