ROSTOS E MÁSCARAS

Há quinhentos anos vivíamos na alvorada, já em tons rubros vincados, da Modernidade. Uma amizade entre dois homens geniais e dotados de um enorme poder de influência sobre a sua época – Erasmo (1466-1536) e Thomas More (1478-1535) – produziu duas obras que representam, em registos bem diversos de lucidez, esse tempo em que a Europa se agigantava para unificar o planeta inteiro sob a batuta de uma nova racionalidade. E isso por todos os meios: da espada e da palavra; da tecnologia e do comércio. A meio milénio de distância, a grandeza dessas figuras pode ser vista com maior amplitude, pois o nosso ponto de observação, mergulhado agora nas cores rubras do crepúsculo, é-lhes inteiramente tributário. No Elogio da Loucura, escrito por Erasmo em 1509, durante uma das suas visitas à casa de More, registamos não apenas uma amarga sátira de uma sociedade europeia atravessada ainda entre o medievalismo e a modernidade, mas constitui também um balde de água fria lançado sobre algum excesso de optimismo antropológico, cultivado precisamente pelas escolas de pensamento em que tanto Erasmo como More se filiavam. Em 1516, foi a vez do pensador e político inglês se imortalizar através da ficção filosófica, Utopia. Para o público do tempo, esta obra cheia de labirínticas significações, foi lida como um Manifesto de futuro, tendo como núcleo a narrativa de Rafael Hitlodeu, um navegador português. More, também, político atento, não poderia ficar indiferente ao sulcar luso de mares desconhecidos. Ele escreveu o seu livro enquanto Afonso Albuquerque (1452-1515) fazia a Europa regressar à Índia, desta vez para ficar longamente, ao contrário da breve passagem de Alexandre Magno, 18 séculos antes.

Erasmo e More eram também homens do mundo. O primeiro era solicitado, não apenas pelos inúmeros admiradores em toda a Europa (como o nosso Damião de Góis), mas pelo Papado e pelas cabeças coroadas. O segundo, chegaria a Chanceler de Henrique VIII. Cada um à sua maneira, procuraram evitar a ruptura da Europa, num processo que se iniciaria, teologicamente, com a Reforma luterana, e se prolongaria, politicamente, com os Estados nacionais e os seus virulentos surtos bélicos. Erasmo, simpatizava, com muitas das críticas de Lutero à Igreja, mas abominava uma solução que iria replicar na Cristandade o sangrento ódio islâmico entre sunitas e xiitas. More, por seu turno, acabaria decapitado por ordem de Henrique VIII. Demonstrou com o sacrifício supremo, que a integridade da consciência de um homem livre não pode ser conquistada pela espada do soberano. Os séculos vertiginosos que se seguiram acabariam por fusionar os títulos das obras desses homens que se ergueram à condição de rostos da sua época. Hoje, a utopia realizou-se numa desmesura económica e tecnológica que parece ter ultrapassado as fronteiras da loucura. Talvez por isso, na imensa distopia quotidiana em que habitamos, os rostos não conseguem ganhar nitidez. Transformam-se em imprecisos esquissos e máscaras fugidias.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 10 de Outubro de 2020, p. 8.

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Paulo Rodrigues

“Nós, homens da Terra, possuímos um talento especial para destruir coisas grandes e belas.”
Ray Bradbury “Crónicas Marcianas”