A ARTE DO DISTANCIAMENTO

Em 1931, M. Ghandi visitou o Reino Unido para participar em negociações sobre o futuro da Índia. A reunião falhou, mas Gandhi deixou uma marca duradoura na opinião pública britânica, pela cordialidade, agudeza e humor da sua inteligência. Dada a sua relutância em falar para microfones, muitas das declarações que lhe são atribuídas não podem ser confirmadas. Há uma de que gosto particularmente. Interrogado por um jornalista – certamente possuído por uma convicção inabalável da superioridade europeia – acerca do que é que pensava sobre a “civilização ocidental”, Gandhi terá respondido: “Penso que seria uma boa ideia”.

Lembrei-me de Gandhi ao cruzar duas querelas recentes da política nacional, a saber, a discussão sobre o carácter obrigatório ou facultativo da disciplina de Cidadania, e a intensa polémica suscitada pelo abortado apoio do PM à recandidatura de Luís Filipe Vieira à Presidência do Benfica. Ao falarmos de uma disciplina com a designação de Cidadania, assumimos que existe um caudal volumoso de conceitos, princípios, valores e até experiências concretas, que garantem indicadores de partilha muito significativos sobre cultura política na sociedade portuguesa. Só é possível ensinar, aquilo já é efectivo, pelo menos parcialmente. Ora, a estranheza sincera e a resposta atabalhoada que o PM deu, quando solicitado a justificar o seu apoio clubístico, fazem-me pensar se não estaremos a confundir pressupostos e convicções com realidades, dando respostas certas a perguntas ficcionais. Ou, de outra forma: em vez de estarmos a falar sobre o estatuto de uma disciplina de Cidadania, talvez seja preferível reconhecer que perante o estado actual da cultura política em Portugal, essa disciplina é ainda mais uma boa ideia do que uma realidade sólida. Um projecto a merecer mais contributos, com olhos no futuro, mas pés na terra do presente.

A cidadania contemporânea, forjada, primeiro nas ilusões benevolentes das Luzes, temperada pelo calvário de muitas revoluções, estabilizada no equilíbrio frágil das actuais e atribuladas democracias representativas constitucionais, pode ser definida como a delicada ourivesaria da separação, como a arte do distanciamento. Nascemos homens, mas tornamo-nos cidadãos. O que é “natural” nos humanos é a identidade orgânica e apaixonada com o seu clã e a sua tribo. Ocidadão é aquele homem “artificial” que se assume como um sujeito capaz de se transcender, colocando-se nesse ângulo universal, difícil de habitar, que é o da vontade geral. O clubismo do PM não parece ter nascido de um cálculo (teria sido um grosseiro erro), mas antes de uma irreflexão partilhada pela nossa cultura política. Todos os partidos de poder têm aí telhados de vidro. Como D. Morris provou, a paixão futebolística satisfaz o primata que nunca deixámos de ser. Os políticos profissionais têm direito às suas paixões viscerais. Contudo, esse direito à paixão primitiva deve dar lugar ao distanciamento inflexível, quando os contribuintes são chamados a cobrir as dívidas desastrosas dos caudilhos do futebol-negócio.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 19 de Setembro de 2020, p. 10.

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Paulo Rodrigues

Uma sociedade que assiste impávida e serena a episódios sucessivos do chamado “bullying” nas escolas não merece ser chamada de civilizada.
Em boa hora foi criada a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, logo a partir do 7º ano de escolaridade, com um programa que é como um “mapa” para quem está a construir uma personalidade e que, em muitos casos, apenas a escola lhe poderá dar.
Num mundo contaminado pela mentira organizada e em acelerado estado de autodestruição, só uma nova geração, melhor formada que a anterior poderá inverter o rumo.
Se deve ser obrigatória? Pois, claro que deve ser obrigatória! Educação Visual não é obrigatória? Qual é mais importante?
Que futuro estamos a dar a crianças que são vítimas de violência gratuita e que futuro estamos a dar a crianças que exercem a violência sobre os colegas, sem compreender o que os leva a exercer essa violência?
A questão foi levantada por gente sem dignidade e o fedor do oportunismo político é intenso.
O sketch “Costa apoia Vieira” tem todo o aspeto de ter sido lançado para desviar as atenções da desregulação do mercado de trabalho que o governo anda a “cozinhar” com a direita, enquanto apela ao BE e PCP para suportar o governo na AR.
A única coisa que separa este governo do descalabro é uma réstea de credibilidade, que se está a tornar cada vez mais ilusória, há medida que se acumulam contradições na ação executiva, relativamente ao discurso de esquerda.
Imaginem o que aconteceria a essa credibilidade se o assunto fosse a laboração contínua para todas as profissões, em vez do apoio a Vieira.
Vieira que, já agora, tem o apoio de muita boa gente, de muitos partidos e até da justiça, pelos vistos.