PARA QUE SERVEM OS CHEFES MILITARES?

Numa crónica anterior (DN, 03 07 2021) debrucei-me sobre a reforma da Estrutura Superior das Forças Armadas (FFAA), que o governo acabaria por conseguir transformar em lei. Considerei então que a intenção do governo “constitui um erro de gramática militar, arriscando também degradar a lógica política com falácias no lugar de argumentos válidos”. Terça-feira – no mesmo dia que o vice-almirante Gouveia e Melo terminava o seu brilhante mandato à frente da task-force de vacinação contra a Covid-19 – o ministro da Defesa convocou o Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Mendes Calado, que por si havia sido reconduzido no cargo em 1 de Março último, para lhe anunciar a intenção de o demitir, substituindo-o por Gouveia e Melo. No dia seguinte, numa lição de direito constitucional urbi et orbi, Marcelo Rebelo de Sousa destroçava este bizarro e palaciano golpe de secretaria que, a seguir em frente, transformaria o PR numa espécie de carimbo automático das decisões governamentais, além de instrumentalizar o prestígio de um militar, Gouveia e Melo, para amaciar a punição de outro, Mendes Calado, que se mostrara incómodo para o governo.

Este triste episódio, em que o prestígio do Estado é posto em causa pela inequívoca insensatez do próprio governo, revela bem aquilo a que conduz a lei da Estrutura Superior das Forças Armadas, que mereceu uma ampla e fundamentada contestação de antigos e actuais chefes militares, bem como de vários civis para quem a Defesa é uma política pública de primeira grandeza. A completa subalternização dos chefes militares dos Ramos das FFAA fica, pateticamente, demonstrada neste gesto de retaliação do executivo contra o almirante Mendes Calado. Mas, mais do que um erro de gramática militar, este gesto desestabilizador é também um duplo erro político. Manifesta não só uma concepção paupérrima da missão vital das FFAA e da responsabilidade das suas chefias, como também uma crispada concepção do equilíbrio entre obediência funcional e liberdade de expressão, que é incompatível com uma democracia madura. Curiosamente, já em 1784, quando a Europa era governada, maioritariamente, por monarquias absolutas, Kant escreveu em Berlim sobre os benefícios da liberdade de expressão concedida por reis esclarecidos, como Frederico II da Prússia. Para Kant, a expressão livre da nossa razão está subordinada a dois usos: o “uso privado” e o “uso público”. E prossegue Kant: um militar não pode desobedecer a ordens que recebe no terreno operacional (“uso privado”). Mas esse militar, na condição de “perito”, pode e deve manifestar, tecnicamente, a sua discordância para com essas ordens, em nome do bem público que uma melhor Defesa constitui. O almirante Mendes Calado expressou perante o parlamento, como era seu dever, as razões da sua discordância para com a deficiente proposta do governo, pois era isso que, como “perito” militar, deveria fazer. Depois disso, calou-se e obedeceu, pois mesmo as más leis a todos obrigam, enquanto são vigentes. Se o governo considera que os chefes militares devem prescindir de colocar o seu conhecimento ao serviço do bem comum, para se submeterem cegamente, até aos caprichos do executivo, então o que está em a causa é a qualidade e futuro da nossa democracia. Nesse caso, o alerta de Camões fica mais válido do que nunca: “um fraco rei faz fraca a forte gente” (Lusíadas, III; 138).

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, em 2 de Outubro de 2021, página 10.

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