O PARADOXO DE FERMI E A NOSSA DOENÇA MORTAL

O brilhante filme de Christopher Nolan, Oppenheimer, trouxe para o grande público a evocação de uma série de físicos teóricos fundamentais, mas que são menos conhecidos do grande público, ofuscados pelos nomes mais conhecidos de Albert Einstein, N. Bohr, ou W. Heisenberg. Um deles, não menos genial do que os acima referidos, foi Enrico Fermi (1901-1954), prémio Nobel da Física de 1938 (todos os cientistas já mencionados aparecem no filme). De acordo com alguns relatos, feitos de memórias sem base escrita direta, em 1950, Enrico Fermi estaria num restaurante do famoso Laboratório de Los Alamos, na fila para o almoço, numa conversa descontraída com outros cientistas célebres, entre os quais Edward Teller (o pai da bomba de hidrogénio e inimigo declarado de Robert Oppenheimer, ao ponto de o trair em 1954 no processo de “caça às bruxas” de que este foi alvo). Segundo Teller, Fermi teria colocado, de modo interrogativo (“Afinal onde estão eles?”), a hipótese de não existência de vida extraterrestre, pelo menos vida suficientemente inteligente para produzir uma tecnologia capaz de conduzir à exploração do espaço exterior. Em 1950, a imprensa dos EUA pululava com relatos fantasiosos de avistamentos de OVNI. Para Fermi, o paradoxo residiria no contraste entre a quase infinita probabilidade da existência de vida tecnologicamente exuberante, dada a imensa escala do universo, e a nulidade de provas empíricas da sua realidade. Fermi não deu grande importância a esta conversa, mas o seu impacto foi imenso. Carl Sagan e outros físicos, defenderiam mais tarde a tese de que seria preciso refinar a procura por sinais de vida inteligente. Nesse sentido, a NASA criou o programa de pesquisa SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence).

Enrico FERMI (1901-1954)

Seremos a única civilização cósmica? Apesar de Fermi não ter colocado em causa a existência de vida inteligente no seu conjunto, mas apenas a de civilizações que fossem capazes de se expandir na galáxia e no universo, a verdade é que a sua interrogação, que rigorosamente nem sequer pode ser considerada um paradoxo, seria radicalizada por outros astrónomos bastante mais tarde. Num artigo de 1975, Michael H. Hart desenvolve uma crítica cerrada àquelas que considera serem as principais hipóteses defensoras de uma pluralidade, mesmo que modesta, de outras civilizações planetárias, concluindo que “nós somos a primeira civilização na nossa galáxia, embora a causa da nossa prioridade não seja ainda conhecida” (1). Cinco anos mais tarde, Frank J. Tipler vai mais longe, afirmando que existe uma fortíssima probabilidade de a humanidade constituir a “única espécie inteligente” (single intelligent species) não somente na nossa galáxia, mas no universo inteiro (2). Apesar das inúmeras objeções que a radicalidade de uma tal tese acarreta, a verdade é que os argumentos em torno do alegado “paradoxo de Fermi”, nas suas variantes mais extremas, foram usados em 1993 para justificar o cancelamento do financiamento do governo federal dos EUA ao programa SETI, cuja sombra sobrevive agora num regime intermitente de mecenato (3).

O desprezo pela Terra. Quem presuma que a tese da eventual solidão humana no universo – que é hoje comum nos círculos científicos, sobretudo naqueles ligados à astronomia e exploração espacial – poderia ter conduzido a uma reapreciação em alta do valor único da Terra como nosso planeta materno – evitando os riscos da sua banalização nas representações pletóricas dos que defendiam, desde o século XVII, um universo a regurgitar de vida inteligente -, engana-se redondamente. Pelo contrário, o desprezo pela Terra é acentuado na maioria dos autores e decisores que não só partilham como hiperbolizam a conceção de uma tecnologia conquistadora de mundos, movida por uma pulsão utopicamente irrealista, omnipresente na parte mais sinistra do código genético da Modernidade. A Terra não passa de uma base de partida. A solidão humana no universo observável seria o prelúdio de uma expansão desmedida da humanidade pelo universo inteiro, aproveitando a trilogia das novas tecnologias emergentes (nanotecnologia, inteligência artificial e robótica), poderíamos imaginar o envio de sondas não-tripuladas com a capacidade de autorreplicação. Se cada uma delas pudesse produzir dez cópias de si mesma, em escassos milénios, a humanidade poderia ter “milhares de milhões de sondas deste tipo rumando para todas as partes da galáxia” (billions of such probes on route to all part of the galaxy) (4).

Nick BOSTROM (n.1973)

Surpreendentemente, ou não, coube a um filósofo, Nick Bostrom, o papel de se assumir como um dos mais vigorosos porta-vozes desta desmesura tecnológica que chega ao ponto de fazer da muito provável destruição ecológica do planeta, o maior imperativo para embarcar numa distopia de fuga, por procuração robótica, para o espaço sideral, disfarçada em linguagem épica. Escutemos Bostrom: “Se – como eu espero que seja o caso – formos a única espécie inteligente que alguma vez tenha evoluído na nossa galáxia, e talvez em todo o universo observável, isso não implica que a nossa sobrevivência não se encontre ameaçada.” (5). Poderia esperar-se que o passo seguinte da análise de Bostrom fosse preenchido pelo apelo à defesa da Terra, este ninho precioso, único de onde recebemos, graciosamente, todas as condições de possibilidade necessárias e suficientes para desenvolvermos as nossas capacidades. Seria lícito esperar de um filósofo, o espanto e a condenação da nossa incapacidade de determos a máquina voraz de destruição do berço que nos alimenta e protege, apenas explicável pela velha ganância humana, intensificada pelo capitalismo voraz, totalmente focado no crescimento exponencial e desprovido de qualquer princípio interno ou externo de limitação. Seria mesmo indispensável esperar deste autor uma orientação ética, política e económica, para operar mudanças civilizacionais no sentido de permitir uma habitação duradoura e sustentável do nosso planeta, respeitando a imensa diversidade biológica e paisagista, sem esquecer a infindável possibilidade de beleza e renovação que nos oferece o conhecimento e o contacto mais íntimo com a Natureza de que dependemos e à qual estamos umbilicalmente ligados.

Contudo, nada disto acontece. Bostrom integra-se num tipo de racionalidade – dominada pelo impulso de conquista e filha da pulsão de morte – completamente blindada a tudo o que não seja tecnologicamente processado. Para ele, a Natureza ameaçada pela nossa vertigem devoradora, não é vítima, mas sim obstáculo: “se sobrevivemos e prosperarmos nós evoluiremos para algum tipo de existência pós-humana” (6). O nosso corpo e as nossas faculdades serão considerados módulos obsoletos, que devem ser deixados para trás, para prosseguirmos, agora na condição de ciborgues, aditivados pela Inteligência Artificial, a nossa “gloriosa” viagem em direção às galáxias mais distantes! Exportar pelo universo o nosso lixo tecnológico, como uma carga viral para contaminar a galáxia e o universo inteiro, só pode vir da mente de alguém profundamente afetado pela doença incurável que irá fazer terminar a odisseia humana num potlach de morte e sofrimento. Essa doença que nos destrói é a irremediável falta de amor pela Terra. Algures no tempo, perdemos essa faculdade que nos ligava ao todo que a natureza é. E com essa perda, em breve nos juntaremos às espécies extintas. Uma extinção mais radical do que a dos dinossauros, pois nem sequer teremos uma consciência sobrevivente que nos recorde.

Notas

  1. Michael H. Hart, ”An Explanation for the Absence of Extraterrestrials on Earth”, Royal Astronomical Society (1975) 16, pp. 128-135.
  2. Frank J. Tipler, ”Extraterrestrial Intelligent Beings do not Exist”, Royal Astronomical Society (1980) 31, pp. 278-279.
  3. Stephen J. Garber,”Searching for Good Science: The Cancellation of NASA’S SETI Program”, Journal of the Bristish Interplanetary Society, 1999, vol. 52, pp. 3-12.
  4. Nick Bostrom, “In the Great Silence there is Great Hope” [Commissioned for BBC Radio 3, “The Essay”], 2007, p. https://nickbostrom.com/papers/fermi.pdf
  5. Ibidem, p. 7.
  6. Ibidem.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de letras, edição de 20 de setembro de 2023, pp. 30 e 31.

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