Um Contributo de Hannah Arendt
Um dos maiores problemas éticos contemporâneos, que está longe de ter sido suficientemente aprofundado, é o do esclarecimento da estrutura moral da crise global do ambiente. Aquilo que se designa como ética ambiental, e que tende a desdobrar-se em vários domínios de ética aplicada, é importante, mas não é suficiente para alguns aspectos essenciais. A pergunta que aguarda resposta é a seguinte: se há décadas temos conhecimento inegável de que habitamos o nosso planeta como se a nossa intenção fosse a de o tornar num inferno inabitável pela nossa própria espécie, por que motivos continuamos a agir, individual e colectivamente, indiferentes a esse conhecimento e dominados por uma inércia de que no limite conduzirá à autodestruição?
Neste primeiro artigo proponho que consideremos o conceito de “banalidade do mal”, desenvolvido por Hannah Arendt na sua obra de 1963, Eichmann em Jerusalém. Uma Reportagem sobre a Banalidade do Mal, (ed. port., Tenacitas, 2013). Esta obra resultou de uma compilação editada dos cinco artigos que a filósofa publicara no semanário New Yorker, que a enviara, em 1961, como repórter (a seu pedido) para cobrir o julgamento em Israel de Adolf Eichmann (1906-1962), um dos principais responsáveis pela logística do Holocausto. Arendt não é apenas uma analista brilhante do terramoto nazi, mas também sua vítima. Foi obrigada a fugir da Alemanha em 1933. Forçada, depois da derrota francesa em 1940, a deixar o seu lugar de exílio para escapar ao ocupante hitleriano, tendo permanecido em Lisboa com o seu marido de Janeiro a Maio de 1941 (ver artigo da sua biógrafa, Sylvie Courtine-Denamy publicado no JL, em Abril de 2012), até embarcar para os EUA, como refugiada, num país de que desconhecia a língua.
Em torno do ‘Mal Radical’
O tema do mal está omnipresente na sua impressionante viagem ao totalitarismo (As Origens do Totalitarismo ,Dom Quixote, 2006).. Contudo, já aí o que mais impressiona Arendt é a dinâmica organizacional e industrial dos regimes totalitários. A cultura do universo fabril transportada para as “fábricas de cadáveres” e para os campos de extermínio e de esquecimento. Não havia aí diferença entre coisas e seres humanos. Todos são igualmente dispensáveis, incluindo os gestores dos extermínios, que sabem serem também eles peças dispensáveis numa engrenagem que os liberta de fazer perguntas ou de carregarem o fardo da consciência. O conceito a que Arendt com alguma hesitação recorre nessa altura, é o conceito kantiano de “mal radical” (radikales Böse), usado por Kant em 1793. Mas, como a própria Arendt reconhece, para Kant esse mal não correspondia a nenhuma intenção estruturalmente diabólica (Bosheit), mas apenas a uma “propensão” (propensio, Hang, Neigung), ou, de modo mais enfático, a uma “perversão do coração” (Verkehrtheit des Herzens). Só o impulso para o bem, era para Kant uma “disposição” (Anlage) dinâmica e voltada para a realização do potencial de progresso moral humano ainda em aberto.
Em 1958, no Prólogo da sua obra fundamental, A Condição Humana (Relógio D.Água, 2001), Arendt aproxima-se da sua futura inovação na teoria ética, quando chama a atenção para um traço fundamental da nossa contemporaneidade (ainda mais em 2020!): “ a irreflexão (thoughtlessness) – a imprudência temerária ou a irremediável confusão ou a repetição complacente de ‘verdades’ que se tornaram triviais e vazias – parece ser uma das mais importantes características do nosso tempo. “ Perante isso, a única terapia seria a do exercício do pensamento: “O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de reflectir sobre o que estamos a fazer.”
A “revelação” de Jerusalém
A frase mais comum a todos os altos dignitários do regime nazi que compareceram como réus no julgamento de Nuremberga (1945-1946), foi a maquinal declaração de pretensa inocência através da obediência a uma cadeia de comando: “Eu apenas obedeci a ordens” (Ich habe nur Befehle befolgt). Seguindo atentamente os testemunhos de Eichmann no julgamento e documentando-se sobre a sua biografia, Arendt encontraria algo mais. Ela traçou um perfil do organizador das deportações para a morte de milhões de judeus e outras minorias, como os ciganos, que se caracterizava pela sua vulgaridade, pela ausência de traços marcantes, seja de fervor ideológico ou de brutalidade sádica. Eichmann era um burocrata que procurava desempenhar com zelo as suas funções. Ligado aos assuntos judaicos, mesmo antes da guerra, ele não se distinguiu por nenhuma prévia militância antijudaica verbal ou literária (ao contrário de intelectuais como Carl Schmitt). Com ironia, Arendt nota que a sua maior intensidade anímica residia “na sua extraordinária diligência para ascender na carreira pessoal”. Até à invasão da URSS, o projecto nazi para resolver a “questão judaica” passava pela concentração dos judeus num super-ghetto, algures no sul da Polónia ou em Madagáscar. No Verão de 1941, há uma mudança radical. A emigração forçada deu lugar ao extermínio, que ganhará foros de sistemática empresa industrial a partir da conferência de Wansee, de 20 de Janeiro de 1942, coordenada por Reinhard Heydrich e secretariada por Eichmann. Nessa reunião estiveram presentes altos funcionários do governo do III Reich. A supressão dos judeus da face da Terra foi assumida como desígnio intergovernamental, como o excelente museu instalado hoje na villa onde decorreu essa sinistra conferência bem o exibe.
Na sua minuciosa investigação sobre o processo mental de Eichmann, Arendt chega mesmo a identificar nele os sinais de uma perturbação moral, de uma hesitação perante a enormidade do extermínio que os seus superiores, lhe impunham como nova missão a desempenhar. Contudo, ao fim de um mês, Eichmann afastou as hesitações, trocando a reserva pela obediência incondicional. Quase numa síntese, escreve Arendt: “Ele [Eichmann] não era estúpido. Foi a pura irreflexão – que não é de modo algum idêntica à estupidez – o que o predispôs a tornar-se num dos maiores criminosos desse período.”
O mal como “fungo de superfície”
O impacto do livro de Arendt foi terrível para a sua autora. Durante anos, este exercício de pensamento independente, sem concessões, excepto a de ser fiel às conclusões do seu próprio juízo, colocaram Arendt na lista negra do Estado de Israel e das muitas comunidades judaicas pelo mundo fora. A banalidade do mal, aliada à crítica que a autora fez ao comportamento de algumas lideranças judaicas durante o Holocausto, alimentou a acusação de que Arendt estaria a subestimar as causas e consequências da tragédia que se abatera sobre os Judeus. Mas Arendt manteve-se firme. Numa carta de 1963, ao famoso intelectual judaico Gershom Scholem, a pensadora reitera a sua tese: “Tenho de facto a opinião de que o mal nunca é ‘radical’, de que é apenas extremo e que não possui nem profundidade nem nenhuma dimensão demoníaca. Ele pode crescer desmesuradamente e assolar o mundo inteiro, precisamente porque se espalha como um fungo na superfície. Ele desafia o pensamento, como eu disse, porque o pensamento procura atingir alguma profundidade, ir até às raízes, e quando o pensar se confronta com o mal, ele fica frustrado porque não há nada. Essa é a sua ‘banalidade’. Somente o bem tem profundidade e pode ser radical”.
O Holocausto não resultara apenas da acção de psicopatas sociais que em tempos de guerra e revolução acederam ao poder político, transformando Estados em máquina de terror totalitário. Ele não teria sido possível sem a colaboração e cumplicidade de milhões de homens e mulheres que decidiram deixar de reflectir sobre o sentido e significado dos seus actos e das suas vidas. O Holocausto não fora o primeiro “massacre administrativo” (uma expressão que Arendt considerava mais rigorosa) da história humana, como os crimes do colonialismo europeu, do estalinismo e do maoísmo bem o demonstram. As múltiplas causalidades históricas, económicas, políticas e até psicológicas, escondiam, mas não eliminavam uma causalidade moral, que embora interagindo com todas as outras dimensões acima mencionadas, não perdia a sua especificidade própria. Esse mal ético, contudo, era superficial, contrastando com a sangrenta magnitude dos fenómenos de que era cúmplice. Baseava-se não no compromisso profundo com valores, mas antes na pura e reiterada irreflexão. Numa suspensão de pensamento e juízo crítico, sobre os actos individuais e o seu impacto sobre o mundo. Em vez de um mal profundo e radical, emerge um mal intelectualmente negligente, medíocre, superficial e difuso. Com a capacidade de rápida propagação que o assemelha a um fungo destinado a uma expansão universal se deixado sem qualquer obstáculo.
Em que medida nos ajuda este conceito de “banalidade do mal” a compreender, como uma peça essencial embora não exclusiva, a estrutura moral da catástrofe ontológica que designamos como crise global do ambiente? Por aí seguiremos no nosso próximo ensaio.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, 1 de Julho de 2020, página 28.
Não nos devemos esquecer dos genocídios praticados pelos alemães na Namíbia, 50 anos antes do holocausto, sobre os povos OVAHERERO e NAMA.
A ordem imperial nº 3737, dizia “Todos os Hereros encontrados dentro de fronteiras alemãs, com ou sem uma arma ou gado, serão abatidos a tiro.”
Foi na Namíbia que os alemães criaram, em 1905, os primeiros campos de concentração, KONZENTRATIONSLAGER.
Em 1908, foram contabilizados 65000 mortos da tribo Ovaherero e 10000 mortos da tribo Nama.
No Museu de História Natura de Nova Iorque, estão guardados cránios de vítimas do genocídio, onde consta a gravação da palavra HERERO e um número de inventário (o mal , na alemanha, é muito bem organizadinho…).
Esses cránios exibem ainda marcas de raspagem.
As mulheres Ovaherero eram obrigadas a “ferver” em água os cránios dos seus familiares e amigos e depois rasparem a carne até ficar apenas apenas o osso.
Os cránios eram enviados, depois, para a alemanha, para estudos antropogénicos.
(Resumo de uma artigo publicado no Jacobin Magazine em 3/7/2020, da autoria de Maresi Starzmann.)
Sempre tive muita admiração por Hanna Arendt, mas sempre me pareceu que faltava “qualquer coisa” ao conceito de banalidade do mal.
Há em todos os genocídios praticados por este povo uma crueldade e uma ignomínia sem nome, que vão para além da banalidade.
Não nos devemos esquecer também na sabotagem económica praticada pelo atual regime alemão, que atingiu os países do sul da europa – agora também eles/nós atuais colónias da alemanha (que nos tornamos ao assumir a moeda alemã, há 20 anos atrás) – quando em outubro de 2010, merkel e sarkozy anunciaram em Deauville a reestruturação das dívidas dos países periféricos até 2013.
Esta “brincadeira” provocou o progressivo aumento do spread da dívida Portuguesa até chegar aos 7% em 2011, ao pedido de resgate, à demissão do governo sócrates, à eleição do governo paf, à vinda da troika, ao desastre económico de 2012 até hoje.
Tirando uma pequena reestruturação da dívida Grega, ninguém mais reestruturou coisa nenhuma.
O objetivo era mesmo o de fazer subir os spreads, para obrigar os países periféricos a implementar a ideologia neoliberal.
A ignomínia continua e nós estamos agora no lugar da Namíbia.