John Bolton não resistiu à oportunidade de fazer um sucesso editorial com um livro contando a sua passagem pela Administração Trump (The Room Where it Happened. A White House Memoir, Simon Schuster, 2020) povoado de pequenas anedotas fastidiosas, onde se destaca, permanentemente, o deslumbramento do autor consigo próprio, contrastando com a tontice e impreparação do Presidente. Em Washington não há períodos de nojo e a noção de reserva ou honra há muito desapareceu de um pessoal político que está no mercado para fazer lucro, ou como dizia o falecido filósofo John Rawls a propósito do Congresso dos EUA, para “vender e comprar leis”, como num leilão onde há muito se perdeu o sentido da decência. Num certo sentido, Bolton e todos os outros que não hesitaram em ir comer à mão de Trump são moralmente piores do que ele. Quem come à mesa do monstro, quem aceita os seus convites, as suas nomeações, quem bate palmas às enormidades que o actual inquilino da Casa Branca profere todos os dias, quem se manteve calado perante a corrosão das instituições republicanas do federalismo norte-americano torna-se cúmplice dos actos presidenciais.
Se de Trump, prisioneiro na segunda pele da sua invencível ignorância, nada há a esperar, que dizer de Bolton, um veterano na segurança nacional? Como seria de prever, Trump e o Conselho Nacional de Segurança (NSC) não escapam às críticas que o livro tece à impreparação perante a Covid-19, que já matou mais norte-americanos do que as baixas somadas das guerras da Coreia e do Vietnam. Contudo, se procuramos o que no livro se pensa sobre as alterações climáticas – a maior ameaça ontológica e existencial global – vemos que o tema só aparece em três breves passagens, nas quais Bolton aplaude a saída dos EUA do Acordo de Paris em nome da afirmação de um senil e belicista conceito de soberania ilimitada, há muito caducado. Bolton não nega a existência de alterações climáticas (como é o caso de Trump ou Bolsonaro), mas recusa-se a pensar no assunto. Este é o ponto crucial. O caricatural negacionismo climático retórico de Trump distrai-nos do negacionismo climático prático da elite mundial (a frente unida dos governos e do capital financeiro). Os seus disparates lançam uma nuvem de fumo sobre o modo como a estratégica de saída da pandemia implicará a aceleração, sem reforma, de uma economia global que actua como um vírus, destruindo o hospedeiro: a Terra e a capacidade de suporte à vida dos seus ecossistemas. Portugal não é excepção: agricultura intensiva que esgota os solos, infra-estruturas pesadas e absurdas como o aeroporto do Montijo, permissividade perante a exploração mineira. O governo aliena o território à voracidade dos fundos de investimento, por mais sinistra que seja a sua origem, como se não houvesse amanhã. Os 45ºC agora atingidos no Árctico parecem dizer-nos que mais depressa teremos uma vacina contra a Covid-19 do que seremos capazes de curar a nossa dependência desta economia predatória. Que hoje nos alimenta, para amanhã nos condenar ao inferno em vida.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de sábado dia 27 de Junho de 2020, página 16.
“Agora, luta num mundo onde ninguém se dá sequer ao trabalho de mascarar a crueldade sob a capa da retórica humanitária.”
Philip Roth “A Mancha Humana”