O BREXIT COMO CATÁSTROFE PREVENTIVA

Na balbúrdia que reina nos Comuns há um fio condutor de coerência: os deputados britânicos, incluindo Jeremy Corbyn, essa figura dissimulada que parece saída da pena de Jonathan Swift, provaram nestes mais de mil dias que nos separam da decisão popular de sair da UE, que, tal como quando autorizaram o referendo de 2016, não têm nem conhecimento nem capacidade suficiente para tomar uma decisão fundamentada sobre os custos e os benefícios dos rumos a seguir. As votações que o Parlamento tem pela frente são escolhas entre diferentes níveis de um espesso véu de ignorância, que – dada a desproporção entre o pouco que se sabe e as pesadas consequências de qualquer decisão – aconselhariam a devolver a voz ao povo. Mesmo que seja para confirmar definitivamente o divórcio.

O mais recente Conselho Europeu, em que ficou manifesta a vontade francesa de rapidamente defenestrar Londres para fora da UE, é indicativo do mal crónico e aparentemente invencível que ameaça o futuro de centenas de milhões de europeus, sobretudo dos que habitam nos países da Zona Euro (ZE). Que exista gente que faça contas aos ganhos com o Brexit, gente que não percebeu que todos os europeus vão perder, mais cedo ou mais tarde, ilustra tristemente a insustentabilidade do actual sistema de governo europeu, dominado pela absurda ideia de que o interesse europeu é igual à soma de 27 (ainda 28) egoísmos nacionais. A ZE vive em regime de gestão corrente, assente numa economia mercantilista vulnerável a pressões externas. A navegação é de cabotagem. Há muito se perderam as bússolas e as cartas. Não existe estratégia nem liderança. É sintomático que as figuras mais influentes da ZE sejam Merkel (que ao anunciar a saída para 2021 está a ficar cada vez mais invisível) e Macron, que já não consegue sair à rua no seu país sem forte escolta policial. Sem uma viragem federal (agora, apenas possível por milagre), criando um governo europeu legitimado democraticamente, ancorando o euro num orçamento comum pelo menos cinco vezes maior do que o actual, investindo no emprego, no apoio social, na estabilização climática, e na economia verde, a ZE não resistirá às próximas crises financeiras. Como a saída do euro por um só país seria um suicídio com nota prévia, o mais provável é que este purgatório de lenta agonia se prolongue por mais 5 a 10 anos, até o inferno se tornar inevitável para todos ao mesmo tempo. Esse tempo, todavia, podeia ser usado pelo Reino Unido para, depois de 2 ou 3 anos de dolorosa transição, mas alavancado pela sua soberania monetária, pelo seu banco central, pelo robustecimento das relações com outros países, onde se destacaria a China, e pela aposta no mercado interno, poder reconstruir uma normalidade, medíocre, mas habitável. No limite, perante a eventual tragédia duma implosão da ZE, a jangada britânica flutuaria sem se afundar. Cameron e May deixariam de ser vilões para passarem a ser “heróis” hegelianos, isto é, instrumentos inconscientes duma providência histórica que se compraz, duplamente, na estupidez e na dor humanas.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 30 de Março 2019, página 29.

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