LISBOA EM TEMPOS DE INCERTEZA (I) – 5 TESES SOBRE O PASSADO

Este artigo (cuja segunda e última parte – “Cinco Teses sobre o Futuro” – será publicada na próxima edição do Jornal de Letras) retoma um contributo do autor para o Catálogo da Exposição Futuros de Lisboa, que esteve patente no Museu de Lisboa-Torreão Poente, de Julho a Novembro de 2018.

1. Não existe futuro fora das cidades. Só existe futuro quando o tempo se transforma num problema histórico. Se a história é a consciência do tempo, então apenas existe história urbana. A ideia de uma descontinuidade do fluxo temporal, rompendo com a eterna repetição dos dias e das estações típico da experiência humana pré-histórica, apenas é possível com a intensificação crítica da população, da produção material, das trocas e comunicações que configuram o fenómeno urbano. As cidades são criações frágeis, mas mais duradouras do que todas as outras modalidades políticas de grau superior. Os Estados e os regimes passam, mas as cidades tendem a manter-se ou a reerguer-se antes das monarquias, repúblicas ou impérios a que tenham pertencido ou venham a integrar.

2. A cidade como segunda natureza. A escrita – uma tecnologia fundamental para a construção civilizacional – surgiu na cidade. Esta é uma criatura submetida às leis da natureza, aos fluxos de matéria e energia dos ecossistemas naturais, contudo, é uma criatura inventada e penosamente mantida, aperfeiçoada, reconstruída pelo engenho colectivo da espécie humana. As pinturas rupestres mostram-nos a figura humana combinada com os animais, numa constelação fusional. A consciência de si do ser humano como distinto da natureza, como habitante de um ecossistema de segundo nível, implica a existência da cidade como pré-condição. A arte funerária do Antigo Egipto mostra-nos uma humanidade sofisticada, hierarquizada, transportada em bigas de guerra, empunhando as suas armas e os seus utensílios de trabalho. Mesmo os animais, aparecem já enquanto súbditos da cultura humana, isto é, da civilização urbana com os seus escribas, administradores e guerreiros profissionais.

3. A síndrome de Jericó ou o declínio e o renascimento das cidades. Há mais de dez mil anos que Jericó existe como realidade urbana. Dois mil antes dos primeiros assentamentos do neolítico. Nesse longo fôlego temporal, assinalam-se, como se de um análogo da respiração se tratasse, as várias expansões e contracções do processo de urbanização. As cidades criam regras próprias para as fontes e recursos naturais de que dependem. Elas concentram a água, a energia, os alimentos, mas também o que na natureza existe em modo disperso: os resíduos e os efluentes de todos os tipos formando a ameaça da poluição e da doença, que constitui um dos testes vitais para a qualificação e a sobrevivência das cidades. Criaturas complexas, requerendo sempre um fortíssimo investimento de imaginação e engenho, as cidades são o orgulho e o elo fraco das civilizações que representam. Calcula-se que Roma atingiu um milhão de habitantes no final da República tendo mantido, ou até crescido ligeiramente esse número durante os três séculos seguintes. A queda do Império Romano foi também e sobretudo uma catástrofe urbana, que afectou não só a capital mas a vasta rede de grandes urbes imperiais. A complexidade política, económica e administrativa do Império cedeu perante o pluralismo simplificador da longa era medieva. A cidade por vezes recua até ao ponto de se tornar uma mera sombra da sua antiga glória. O regresso ao campo deixa sempre muita gente entregue a uma morte prematura. Foram muitos milhões no século V a desparecerem num sofrimento que ecoa mais nos dados brutos e sem evasivas da arqueologia do que nas narrativas históricas, truncadas e ficcionadas pelos sobreviventes. Foram precisos mais de 15 séculos para que nos alvores de 1800 uma outra cidade europeia, Londres, voltasse a imitar Roma, ultrapassando a fasquia de um milhão de habitantes.

4. Lisboa e a mega urbanização da Modernidade. Lisboa está intimamente ligada ao actual surto de urbanização que caracteriza a Modernidade nos últimos 5 séculos. Muito antes de Copérnico ter proposto a sua nova Cosmologia em 1543, já as navegações oceânicas portuguesas, partindo de Lisboa, tinham inaugurado uma nova imagem do mundo, criando as primeiras rotas comerciais globais e a primeira cartografia planetária. O lugar de Lisboa é duplamente central. Primeiro, por ter sido o centro político, tecnológico e militar do processo de mundialização que, apesar de oscilações e recuos, jamais foi interrompido. De acordo com Voltaire, a rota marítima entre a Europa e a Índia, inaugurada por Vasco da Gama, ofereceu uma nova cronologia à história universal. Segundo, porque a tragédia humana do terramoto de 1755 foi também uma catástrofe que deixou marcas no pensamento europeu. Nas ruínas de Lisboa, a consciência europeia tomou consciência da ausência de providência e da profunda solidão da humanidade num mundo secularizado, onde a única fonte de esperança, citando de novo Voltaire no final do seu Candide, residia naquilo que fossemos capazes de “cultivar no nosso jardim”. Em Lisboa convergiram as novas rotas materiais e tecnológicas, assim como a dura revelação de um mundo sem respaldo divino, valores que continuam a inspirar e a ensombrar as cidades em expansão e metamorfose ao nível global.

5. Lisboa e as duas urbanizações em marcha. A uma primeira vista podemos falar de um processo de urbanização único, generalizado, e cada vez mais intenso. Em 1900, Londres foi a primeira cidade a ultrapassar cinco milhões de habitantes. Em 2000 já existiam 60 cidades indo largamente para além desse número de moradores. Apesar de todas as cidades, seja qual for a sua latitude, terem de enfrentar e gerir gigantescos constrangimentos ambientais, parece ser claro que existem dois perfis distintos de urbanização separando os países do Norte, com uma industrialização e uma urbanização mais antiga e madura, relativamente aos países emergentes e em vias de desenvolvimento, onde o afluxo de população às cidades prossegue de modo impetuoso e avassalador. Na Europa e nos EUA, o crescimento demográfico das cidades tende a estabilizar ou mesmo a diminuir. A clivagem cidade-campo, muito atenuada pelas novas tecnologias de comunicação e pela renovação das rotinas de trabalho, encoraja as cidades a investirem na qualidade de vida e em indicadores de sustentabilidade visando também reduzir a pegada ecológica, um “luxo” a que muitas cidades de países do Sul não podem ainda dar-se. Contudo, no caso de Lisboa e de outras cidades portuguesas, sobretudo após a lei de 1965 que garantia a privatização das mais-valias urbanísticas, geraram-se casos grosseiros de especulação urbana, em que sórdidos lucros particulares foram conseguidos à custa de graves danos públicos afectando os solos, a paisagem e a qualidade de vida dos moradores, por vezes de um modo estrutural como é o caso das situações de mau planeamento da política de transportes.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, na edição de 27 de Março de 2019, p. 27

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