Um dos indicadores da decadência de um povo é a sua incapacidade de encontrar no seu passado as vozes inspiradoras para ajudar a navegar nos tempos difíceis, quando estes se transformam numa realidade irreversível. O centenário de Gonçalo Ribeiro Telles (doravante GRT) não deve ser encarado, para usar uma terminologia do jovem Nietzsche, nem numa perspetiva “antiquária”, nem numa ótica “monumental”. Conservar a memória de GRT não consiste no exercício de transformar o que é vivo e inquietante numa coleção de relíquias sem ligação ao presente. Também não pode ser um gesto de imitação grandiloquente, desprovido duma análise profunda e complexa do contexto e das tendências que estão inscritas nos hodiernos desafios existenciais; da paz e da guerra; do ambiente e do clima; do modelo de economia; da reorganização das esferas da administração e da decisão política. Estou convicto, contudo, de que nunca como hoje o pensamento de GRT nos pode e deve interpelar. Estamos a entrar, vertiginosamente, na época da des-globalização. As estruturas do sistema internacional estão a desfazer-se. Das redes financeiras mundiais, às geografias de produção, comercialização e consumo, não esquecendo os alinhamentos políticos, económicos e militares, tudo está em esfarelamento. O processo intensificou-se com a agressão russa à Ucrânia, que espoletou uma vaga de sanções descabeladas e irracionais que atingem precisamente os fundamentos que os sancionadores, aparentemente, pretenderiam preservar. Onde vamos estar dentro de 3 meses, 1 ano, 3 anos? Escaparemos a uma guerra nuclear? Mergulharemos numa nova guerra-fria? Uma coisa parece, contudo, ser muitíssimo provável. Vamos entrar, na melhor das hipóteses, numa época de paz fria, com reduzida capacidade de cooperação internacional, sem instituições nem lideranças para mobilizar a humanidade na luta contra a crise global do ambiente e clima. A Grande Aceleração neoliberal, que devastou em quarenta anos o planeta mais do que os últimos quarenta séculos, vai perder velocidade. Seremos obrigados a contar, cada vez mais, essencialmente connosco próprios e com a vizinhança amiga que conseguirmos conservar na base das vantagens mútuas.
Esperar o melhor, preparados para o pior
Em novembro de 1967, GRT deu-se a conhecer publicamente durante a comoção nacional das grandes cheias do Tejo, que ceifaram a vida a mais de 500 pessoas. A abrupta emergência enfraqueceu a censura. Só isso explica que GRT tivesse tido oportunidade de falar na RTP. Em vez de um flagelo inexplicável da natureza, aquela tragédia passou a estar associada a erros e escolhas humanas que destruíram a protetora vegetação ripícola da margem dos cursos de água, e à construção desordenada em cima de solos de leito de cheias. Mais tarde, admirei o seu trabalho como um dos pioneiros da política pública de ambiente em Portugal, seguindo, aliás, o legado de José Correia da Cunha (1927-2017), responsável por colocar o ambiente na agenda política da “primavera marcelista”. Da sua experiência executiva, tanto nos governos provisórios, como no governo de Pinto Balsemão (1981-1983), salientam-se as iniciativas para impedir a destruição dos solos, das paisagens, dos recursos hídricos. É verdade que as nossas cidades se expandiram delapidando capital natural. O êxodo rural, transformou paisagens humanizadas em solos roubados pelas monoculturas infestantes e incendiárias, como o eucalipto. Sabemos também que uma rede viária redundante, impermeabilizou solos férteis de que precisaremos amanhã para a nossa mais elementar segurança alimentar. Mas só podemos estremecer, quando imaginamos quanto pior poderia estar hoje Portugal sem a legislação associada ao determinante trabalho de GRT que introduziu a Reserva Agrícola Nacional (RAN), a Reserva Ecológica Nacional) e os instrumentos fundamentais para o ordenamento municipal (PDM) e regional (PROT).
Por convite de José Rebelo, tive o prazer de conviver em Colares, no início de 1999, com GRT, numa longa conversa que também juntou Francisco Ferreira e Francisco Nunes Correia. O resultado está publicado num livro indispensável para quem queira perceber a génese biográfica e intelectual da sua obra política (Ecologia e Ideologia, Lisboa, coordenação José Rebelo, Livros e Leituras, 1999). Na ação de GRT combinam-se duas fontes principais: uma vertente mais tradicional e outra mais moderna. A primeira, vinculada à sua defesa da monarquia, recupera os debates sobre o rural e o urbano, o antigo e o moderno que atravessam o final da monarquia constitucional. A segunda, prende-se com a sua capacidade de trazer para a liça política os ensinamentos do seu mestre Caldeira Cabral, introdutor da Arquitetura Paisagista no país em 1942. GRT ensina-nos que – depois das ilusões seculares do que ele chamava a civilização positivista, naufragarem no oceano da realidade – só sobreviverão os povos que tiverem cuidado do seu território. Os responsáveis políticos, que agora lhe prestam homenagem, deveriam também ter submetido o programa económico com que se pretende recuperar Portugal pós-pandemia (PPR) ao crivo da obra de GRT. O resultado provaria como parece ser abissal a distância entre as palavras de apreço e os atos que as desmentem.
O futuro obriga a fazer escolhas claras
A visão de Ribeiro Telles, de um Portugal que através do “ecodesenvolvimento” fosse capaz de evitar o calvário de uma industrialização padronizada, com o seu rosário de agressão ambiental e desigualdade social, não se concretizou. O país urbanizou-se de modo brutal, escolheu o pior modelo possível de mobilidade, negligenciou a terra e o mar, abandonou o caminho prudencial, que vem do mais antigo húmus da história nacional, que consiste na prioridade dada a uma ocupação geral do território, centrada na agricultura, a que hoje se poderia acoplar harmoniosamente uma economia de serviços com base na tecnologia digital, e na abertura para uma economia do mar, fundada na gestão prudente de ecossistemas e recursos naturais num horizonte, não apenas de conservação, mas também de restauração. Esse modelo de crescimento incompetente produziu a passagem da paisagem rural abandonada à proliferação de monoculturas florestais invasoras, que criaram uma gramática de catástrofe, traduzida no léxico da sazonalidade dos incêndios florestais, que rapidamente se transformou numa lucrativa área de negócios privados. A nossa soberania nacional transformou-se, com a vertigem da pandemia e da guerra, numa metáfora, com a nossa ordem constitucional suspensa, presa a um grande labirinto europeu, que continua a ameaçar eclodir com imenso estrondo.
Os ensinamentos de GRT vão ser hoje e amanhã mais do que nunca necessários. A desaceleração não vai ser um processo instantâneo (a não ser em caso de guerra nuclear…). Há uma inércia poderosa em curso. Apesar do muito provável fracasso da agenda climática, esta vai continuar a ser usada para justificar, em nome da “transição energética”, financiamentos e investimentos que tentarão mobilizar um renascimento da indústria mineira no nosso país. O novo volfrâmio será o lítio, de que Portugal tem cerca da 11 % das reservas conhecidas na U.E. (este valor pode estar já hoje ultrapassado). A fibra dos portugueses e de quem nos governa será colocada a teste perante a resposta a este dilema: vamos escolher trocar solos férteis, paisagens naturais belas e com interesse turístico, fazer perigar recursos hídricos subterrâneos, desalojar populações rurais (apesar da retórica oficial contra o despovoamento), não para salvar o clima, mas para socorrer indústrias multinacionais, que tentam sobreviver, a todo o custo, neste quadro de fragmentação da globalização? Teremos dúvida na escolha, quando a insegurança alimentar é uma das marcas mais prováveis do futuro? Não sei como é que o governo vai decidir, mas tenho a certeza de que Gonçalo Ribeiro Telles não hesitaria em colocar o interesse vital e geral, acima das conveniências passageiras e privadas do lucro, imagem de marca de um capitalismo senil que nos está a encurralar num beco sem saída.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras em 1 de junho de 2022, pp.27-28.