EUGÈNE HUZAR, ANTECIPADOR DA SOCIEDADE DE RISCO TECNOLÓGICO

No ensaio de Ecologia do JL de 28 de junho deste ano, fizemos uma breve apresentação da primeira obra de um autor muito pouco conhecido em Portugal, Eugène Huzar (1820-1890). Nesse texto, analisámos o seu livro de 1855, O Fim do Mundo pela Ciência (La Fin du Monde par la Science). Hoje iremos abordar três teses do seu segundo e último livro, A Árvore da Ciência (L’Arbre de la Science), de 1857. Mais uma vez, iremos recorrer à ajuda de Jean Baptiste Fressoz, a quem muito devemos pelo “ressuscitar” das obras de Huzar. Fressoz considera que o pensamento de Huzar obriga-nos a rever profundamente a nossa conceção do processo de formação do risco tecnológico, que, na contemporaneidade, encontrou no sociólogo alemão Ulrich Beck – e na sua Sociedade de Risco (Risikigesellschaft), publicada em 1986 – uma figura particularmente relevante. Para Fressoz, a obra de Huzar contraria a ideia convencional de uma “tomada de consciência” progressiva do risco tecnológico. A contundência da crítica de Huzar, e a sua boa receção coeva, parecem sugerir o contrário. Ao longo da segunda metade do século XIX, e até aos nossos dias, não tem parado de operar uma contracorrente intelectual, abertamente propagandística e ideológica, de “produção científica e política de uma certa inconsciência modernizadora” (production scientifique et politique d’une certaine inconscience modernisatrice) visando tornar aceitável e “progressista” riscos tecnológicos com graus cada vez mais próximos da incerteza, em nome de indeterminadas vantagens futuras para os indivíduos e a humanidade inteira.

Vejamos três das teses de Huzar, que, de modo articulado, nos surpreendem pela proximidade com os problemas, imensamente mais graves, do final do primeiro quartel do século XXI.

Primeira: A inédita assimetria entre os limites da Terra e o poderio tecnológico potencialmente ilimitado da humanidade. Com uma clareza cristalina, Huzar insiste nessa novidade absoluta de uma humanidade que, pela primeira na história, através da “alavanca da ciência” (levier de la science), inverte a relação de forças com a Terra: “Hoje (..) é o homem que é infinito, graças à ciência, e é o planeta que é finito. O espaço e o tempo deixam de existir para o vapor e a eletricidade…” (Aujourd’hui (…) c’est l’homme qui est infini, grâce à la science, et c’est la planète qui est finie. L’espace et le temps n’existent plus par la vapeur et l’électricité.).

Segunda: crítica aos limites epistemológicos e materiais da ciência. Para Huzar a ciência reúne tantos os aspetos teóricos como as aplicações tecnológicas deles decorrentes. A sua definição corresponderia hoje ao conceito de tecnociência, onde se realiza a fusão entre essas duas dimensões. Para Huzar, as leis naturais constituem uma “harmonia” construída numa longa história natural. A ciência humana é, intrinsecamente, empírica. Limita-se a intervir numa parte da realidade dessa harmonia complexa, sem ter meios de conhecer as consequências dessa ação nas partes e no todo, sobretudo no médio e no longo prazo. Estamos condenados a uma ciência experimental, que através da revolução industrial cresceu exponencialmente em todas as direções. Na verdade, estamos a falar de uma ciência desconhecedora do impacto da sua intervenção. Por isso, Huzar define-se, não contra o progresso, mas como “o inimigo implacável de uma ciência ignorante, sem presciência, de um progresso que caminha cegamente, sem critério nem bússola, virando ao acaso as leis da natureza contra a sua finalidade. Eu temo que o homem que recorre hoje a uma ciência exclusivamente experimental, não isenta de algum perigo, dela possa ser um dia vítima, quando mais tarde brincar com as forças incalculáveis da natureza” (je suis l’ennemi implacable d’une science ignorante, impresciente, d’un progrès qui marche à l’aveugle, sans critérium, ni boussole, au hasard de retourner les lois de la nature contre leur but. Je crains que l’homme, qui se sert aujourd’hui d’une science purement expérimentale, non sans quelque danger, n’en soit un jour victime, quand, plus tard, il jouera avec les forces incalculables de la nature).

Terceira: antecipação do princípio da precaução. Huzar estava convencido, pela sua filosofia da história, de que a desmesura científica, de que falavam as narrativas e símbolos religiosos, como é o caso da “árvore da ciência”, se iria repetir inexoravelmente, desta vez à escala de uma civilização planetária, que ele contemplava em pleno processo de consolidação no seu tempo. Contudo, levado talvez pelo espírito da época, onde soprava um vento de otimismo positivista quanto à possibilidade de ultrapassagem da guerra pela cooperação internacional em torno de preocupações comuns, Huzar considerava a possibilidade de “meios paliativos” (moyens palliatifs), não para evitar a catástrofe tecnológica, que ele julgava ser inevitável, mas, pelo menos, para atrasar, ou talvez minorar, esse desfecho trágico. É neste âmbito que, Huzar propõe princípios de mitigação do risco tecnológico, que vão inteiramente na direção do que hoje designamos, até na letra da lei, como princípio da precaução. Como desconhecemos os resultados da permanente substituição da causalidade natural pela causalidade tecnológica, Huzar enuncia o seguinte princípio de limitação à prática da ciência experimental: “No futuro o homem não deve tentar realizar experiências de grande dimensão, decisivas, sem ter a segurança de que elas em nada vão perturbar a harmonia das leis da natureza” (L’homme dans l’avenir ne doit pas tenter des expériences capitales, décisives, sans avoir l’assurance qu’elles ne peuvent en rien troubler l’harmonie des lois de la nature).

O leitor fica aqui apenas com uma ideia introdutória do genial espírito de Cassandra que animava esta personalidade, até há pouco em risco de ser esquecida.

Bibliografia

Huzar, Eugène, La fin du monde par la science, Paris, Librairie de E. Dentu, 1855.https://fr.wikisource.org/wiki/La_fin_du_monde_par_la_science ; Fressoz Jean-Baptiste, « Eugène Huzar et l’invention du catastrophisme technologique », Romantisme, 2010/4 n°150, p. 97-103. DOI :10.3917/rom.150.0097 ; Fressoz, Jean-Baptiste, L’Apocalypse Joyeuse. Une Histoire du Risque Technologique, Paris, Éditions du Seuil, 2012 ; Fressoz, Jean Baptiste, « Introduction à L’arbre de la science d’Eugène Huzar (1857) », Socioanthropologie, 28 | 2013, mis en ligne le 23 septembre 2015.URL : http://socio-anthropologie.revues.org/1566

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 4 de outubro de 2023, página 32

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