ESPERANÇA COM SOMBRAS DENTRO

Aparentemente, temos razões para celebrar. Depois de anos de indiferença, negacionismo e divórcio dos EUA com o resto do planeta face ao maior problema existencial que a humanidade enfrenta, Abril assistiu a uma convergência virtuosa de vários acontecimentos, todos orientados no mesmo sentido: em 21 de Abril, a Lei europeia do Clima, parte integrante do Pacto Ecológico Europeu (ver JL de 29 Janeiro e 12 de Fevereiro de 2020) saiu do estaleiro para iniciar uma longa e difícil jornada, tendo como objectivo central uma redução até 2030 das emissões de gases de efeito de estufa de pelo menos 55% (em relação ao ano de referência de 1990); dias 22 e 23 de Abril, 40 países e uniões corresponderam ao convite de Joe Biden para consagrar o regresso dos EUA ao Acordo Climático de Paris, tendo Washington apresentado também o objectivo de redução das emissões norte-americanas até 2030, em 50 a 52% face ao ano de 2005 (para a redução dos EUA ser equivalente à da UE, ela teria de ser de 70%, pois 2005 foi o ano em que as emissões desse país atingiram o seu pico máximo); apesar da tensão diplomática entre Washington, Pequim e Moscovo, estes dois países responderam ao convite de Biden, o que é um sinal positivo de que as divergências, por mais fundas que sejam, parecem não obscurecer a compreensão da gravidade do que está em causa para a sobrevivência de toda a humanidade.

As razões para esperança devem, contudo, ser contrabalançadas com as sombras que se erguem em sentido contrário. Vejamos sinteticamente quais as mais importantes.

A política é o elo mais fraco.

Desde o final dos anos 80, quando a comunidade internacional iniciou a sua mobilização para o problema das alterações climáticas (nomeadamente com a criação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas – IPCC, em 1988), que temos assistido a um rumo oscilante, ziguezagueante, preenchido por falsas partidas e verdadeiros recuos: em 1992, na Cimeira do Rio, foi aprovada a Convenção-Quadro das Nações Unidas para as alterações climáticas – UNFCCC). Foram precisos 5 anos, para em Dezembro de 1997, a Convenção ter recebido o protocolo que a tornaria operacional (em 1997, na cidade japonesa de Quioto). Só em 2005, se atingiria o número necessário de países ratificadores do protocolo para a sua entrada em vigor, sendo que em Dezembro de 2012, data do termo da sua validade, só a UE tinha cumprido as suas metas. As emissões e a concentração de gases de efeito de estufa à escala global continuaram a subir dramaticamente. O vazio deixado pelo fracasso do protocolo de Quioto só foi preenchido pelo Acordo de Paris, em Dezembro de 2015. Contudo, ao contrário do protocolo de Quioto, o Acordo de Paris tem uma natureza voluntária, não vinculativa, depende da palavras e da boa vontade dos dirigentes políticos. Nem sequer tem o estatuto de um tratado internacional, para fugir ao inevitável chumbo que sofreria se fosse submetido ao voto do Senado dos EUA.

Os EUA representam uma metonímia do mau encontro entre o maior problema existencial da humanidade (crise ambiental e climática) e a febre neoliberal que se tornou hegemónica no planeta. A constante oscilação dos EUA, imprópria de um país que ainda se considera líder da comunidade internacional, revela que temos fortes razões para desconfiar da firmeza e coerência dos Estados e das políticas. Clinton e Al Gore estiveram na linha da frente em 1997. Em 2001, George W. Bush recusou a submeter o protocolo de Quioto ao Senado afirmando existir incerteza científica sobre as alterações climáticas, para em Maio de 2007, sem esclarecimentos nem desculpas, reemergir afirmando que as alterações climáticas eram, na verdade, um assunto muito sério, comprometendo-se a fazer dos EUA o farol desse combate. Em 2009, Obama tentou aprovar uma Lei federal sobre Energia e Clima, na linha das iniciativas europeias. A lei passou na Câmara dos Representantes sem condições para ter sucesso no Senado. Obama chega à Conferência de Copenhaga, no final de 2009, com as mãos cheias de nada, o que ajuda a explicar o tremendo fracasso dessa Cimeira (COP 15). Com Trump, os EUA recuam a pré-história das lutas ambientais. São anos perdidos.

Na UE, as coisas têm corrido incomparavelmente melhor do que nos EUA, mas não existe nenhuma garantia de que não possam piorar num futuro próximo. Bruxelas continua a ser capital de um clube de Estados que recusa assumir-se como união federal partilhando um destino comum. As regras absurdas de funcionamento da zona euro foram suspensas pela brutalidade da realidade, primeiro pela crise financeira de 2008 em diante, e depois pela pandemia. Mas estão congeladas à espera de um regresso que – se não for entretanto evitado por uma corajosa reforma da união monetária – só poderá ser destrutivo. Para que as alterações climáticas possam ser mitigadas, e tendo em conta as sucessivas hesitações das últimas décadas, teremos de, nos próximos 30 anos, fazer um esforço titânico para atingir a neutralidade carbónica. O esforço da próxima década, para reduzir em cerca de 50% as emissões de GEE, implicará disciplina, coordenação, investimento, continuidade e firmeza. Se olharmos para o histórico acima descrito, verificamos que tais qualificações têm rareado. A política é fraca porque os Estados nos últimos 40 anos foram ficando cada vez mais distantes de um conceito de interesse público com horizonte estratégico, e cada vez mais manietados pelas grandes corporações cujos interesses acabam por determinar as políticas públicas. A influência poderosa do sector financeiro ou do sector energético, passando pelas indústrias da aviação comercial e do automóvel, todos intimamente ligados a actividades emissoras de GEE, vai pesar mais sobre as políticas públicas do que, provavelmente, a análise objectiva do estado do ambiente e do clima. Com Estados fortemente capturados pela estratégia e o horizonte temporal do “plano de negócios” das grandes empresas, existem motivos para sermos prudentes nas expectativas.

Crise ambiental e climática em crescimento exponencial.

Se o registo das respostas políticas à emergência climática se traduz numa linha sinuosa e até enrodilhada, já a situação objectiva pode ser representada por uma agressiva curva exponencial, sem recuos. Em 1750, na alvorada da revolução industrial, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera (o indicador chave para o clima) era de 280 ppmv (partes por milhão de volume). Se recuarmos 800 000 anos, a maior concentração foi de 300 ppmv há cerca de 360 000 anos. Foram precisos 236 anos, entre 1750 e 1986, para atingirmos 350 ppmv, que é considerado por cientistas como James Hansen como um ponto de viragem que obriga a mudanças climáticas que já não podem ser evitadas. Contudo, em apenas mais 36 anos, em 24 de Abril de 2021, aumentámos a concentração para 418, 41 ppmv, o que indica um nível de GEE atmosféricos que ocorreu a última vez há mais de 3 milhões de anos, quando o nível do mar era de 15 a 25 metros mais elevado do que o actual…

Por outro lado, entre 1988 (ano da fundação do IPCC) e actualmente foram emitidos mais GEE antropogénicos do que em toda a história anterior da humanidade. Nas vésperas da Conferência do Clima do passado dia 2 de Abril, promovida por Joe Biden, a Organização meteorológica Mundial publicou um relatório que confirmava a tendência persistente do último lustro para uma temperatura média 1,2ºC acima da do período de referência pré-industrial (que corresponde à média global entre 1850-1900)1. Este dado aconselha-nos a considerar o objectivo ideal do Acordo de Paris, que é o de não ultrapassar 1,5ºC de aumento em relação ao período pré-industrial, como completamente irrealista e, a ser mantido, intelectualmente desonesto.

Consensos, negócios e responsabilidades

O aparente consenso sobre a gravidade as alterações climáticas revelará, na verdade, profundas divergências sobre as prioridades e os meios a seguir. Para alguns sectores industriais, a “transição energética” será uma oportunidade de expandir os negócios com mais financiamento público. Alguns autores consideram até que será possível duplicar o parque automóvel, que é já hoje de mil milhões de veículos, para 2 mil milhões de viaturas eléctricas em 2050!2 A ideia é totalmente absurda. Para alimentar tal indústria, com a tecnologia actual de baterias, seria obrigatório transformar regiões inteiras do planeta (incluindo Portugal, que possui 11% das reservas europeias conhecidas de lítio) em explorações mineiras com o inevitável rasto de destruição de habitats, perda de solo arável, e deslocamento forçado de populações. As elites mundiais, mesmo depois dos puxões de orelhas de Greta Thunberg, não querem mudar um milímetro o seu estilo de vida. Para elas, passar de uma economia do extrativismo e do crescimento para uma economia da moderação e do decrescimento, em prol da duração e da resiliência parece ser um espectro pior do que o foi o do comunismo no século XIX. A esperança está de novo no horizonte do possível. Contudo. ela continua escassamente acompanhada. Precisamos de ter a coragem de escutar a voz do perigo que nos grita há décadas. Precisamos de acordar para a realidade de que se deixarmos o nosso futuro totalmente entregue aos mercados e aos Estados, ele terá escassas hipóteses de não mergulhar no caos. Há um espaço de escolha, de decisão, de poder que deve ser ocupado e desempenhado por cada um de nós.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras de 5 de maio de 2021

1 World Meteorological Organization, State of the Global Climate 2020, WMO Nr. 2064, 2021, 56 pp.

2 Adair Turner, Techno-optimism, behaviour change and planetary boundaries”, Keele World Affairs Lectures on Sustainability, November 12th, 2020, p. 9.

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