EDUARDO LOURENÇO E O OFÍCIO DE PENSAR

No final de 2023, ainda no ano do centenário do nascimento de Eduardo Lourenço, foi publicada uma antologia de textos desse nosso pensador maior, por iniciativa de Luís Machado (Eduardo Lourenço. A Memória dos Afetos, Lisboa, Caleidoscópio). O que mais me fascinou no livro foram algumas reflexões autobiográficas de Eduardo Lourenço, em particular as que são expostas numa das “Tertúlias” que Luís Machado organizou, durante mais de três décadas, no famoso restaurante Martinho da Arcada, em Lisboa.

Na verdade, os apontamentos autobiográficos de Eduardo Lourenço, o que oferecem ao leitor é o segredo da construção não só do seu lugar de pensamento, mas também das condições de possibilidade do exercício do pensar. O seu lugar de origem numa “família modesta”, há muitas gerações ligada à terra e ao trabalho rural, permite perceber que o ponto de partida, embora organizado pelo afeto de um lar e a ordem representada por um pai militar, era uma pura possibilidade que só uma vontade atuante poderia tornar num caminho próprio. Contudo, nos anos de formação, os aparentes insucessos – que não são disfarçados nem desculpados – acabarão por contar mais do que se tivessem sido vitórias. A reprovação, como aluno do Colégio Militar, nas disciplinas especificamente castrenses, que o impediram de se perder numa carreira tão longínqua do seu destino. A saída para França, depois de seis anos como docente universitário em Coimbra, por não ter prestado a devida atenção à necessidade de elaborar e defender uma tese doutoral para prosseguir na carreira académica. Esses acontecimentos são descritos sem acrimónia contra nada nem ninguém. Sem eles, não teria sido possível viver o amor de toda a sua vida, nem ganhar um ponto de vista mais cosmopolítica e universal do que aquele que, eventualmente, teria sido o seu se tivesse ficado nas margens, mesmo que acolhedoras, do Mondego.

O lugar de pensamento para Eduardo Lourenço, exige independência, tempo, e aquela solidão indispensável para o trabalho da reflexão e da escrita. Nem as Forças Armadas, nem mesmo a Academia no seu formato mais tradicional, muito exigente nos compromissos de organização e administração que reclama dos seus membros, seriam o chão adequado para o pensamento livre e heterodoxo de Eduardo Lourenço, tão conhecedor como profundo crítico das modas e tendências intelectuais de cada momento histórico que lhe foi dado viver. Por maioria de razão, jamais poderia ele aceitar ser membro de um governo, mesmo na pasta da Cultura: “Não podia aceitar uma coisa dessas. Não fui feito para mandar em ninguém. Talvez porque não gosto que mandem em mim.” Não seria difícil perceber aqui uma total coincidência com a posição de Kant na recusa da possibilidade do Rei-Filósofo. O pensamento filosófico pode ser útil, precisamente por iluminar as zonas de sombra e risco do exercício do poder, mas ele cometeria um suicídio ao almejar aceder ao poder político, pois este toldar-lhe-ia a visão e distorceria a própria lógica em função dos objetivos materiais que todo o poder pretende atingir. O Rei pode beneficiar da crítica do Filósofo, mas este, não pode ambicionar estar no lugar daquele, pois essa ambição custar-lhe-ia a própria alma.

Há sem dúvida uma pulsão profética no pensamento em geral, que está claramente patente nas leituras do mundo de Eduardo Lourenço. Mas se ele foi e quis ocupar esse espaço arriscado, fê-lo como “profeta desarmado” (pedindo de empréstimo um dos títulos da trilogia biográfica que Isaac Deutscher dedicou a Trotski). Para isso é preciso uma humildade disciplinada, permanente, contendo com mão firme as tentações do “eu”, não fosse a “vaidade”, no dizer de Max Weber, a “doença profissional” de académicos e intelectuais. Só através dessa ética de autocontenção e despojamento, sendo capaz de olhar de frente os abismos do ego, sem por eles se deixar devorar, será possível dar um contributo que se possa considerar como estando à altura da cultura. Escutemos as razões de Eduardo Lourenço: “A cultura não é aquilo que nos enriquece, como a posse das coisas materiais nos enriquece. É aquilo que nos despe de toda a espécie de tentações, das quais a maior de todas é o orgulho de pensar que nós somos os mestres do mundo ou da vida. É [a cultura] aquilo que nos deixa nus e não vestidos.”

Que imenso contraste com o momento atual! Com este tempo em que o ensaísmo se confunde, tantas vezes, com propaganda, e em que a condição de académico e intelectual não dá qualquer garantia de que a palavra dita ou escrita seja algo mais do que uma sofisticada manifestação de uma avençada fidelidade a uma causa. Que falta nos faz Eduardo Lourenço! Ele é um mestre pelo exemplo. Mostra-nos que o pensamento autêntico, aquele que une independência e rigor, é uma arte que exige uma dura ascese, onde se inclui a capacidade de renunciar às suas crenças, se elas não resistirem à pedra de toque da verdade.

Viriato Soromenho-Marques

Soromenho-Marques, Viriato, “Eduardo Lourenço e o Ofício de Pensar”, Diário de Notícias, 6 de janeiro de 2024, página 9.

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