DIREITOS HUMANOS EM PORTUGAL UMA ODISSEIA DE PENSAMENTO E AÇÃO

Susana Mourato Alves-Jesus acabou de publicar uma monumental obra sobre os direitos humanos em Portugal, das origens até meados do século XIX. Com prefácio do nosso colaborador Viriato Soromenho-Marques, esta longa e profunda pesquisa coloca-nos não apenas no centro de debates filosóficos, como os envolvidos nas reformas pombalinas, mas também na proximidade de personagens de carne e osso que arriscaram a vida por aquilo em que acreditavam, como foi o caso de Almeida Garrett, Passos Manuel ou Sá da Bandeira, entre muitos outros.

Existem pelo menos três razões que transformam esta obra de Susana Mourato Alves-Jesus – Direitos Humanos em Portugal: História e Utopia. Das Origens à Época Contemporânea – numa leitura indispensável para todos os leitores que queiram aprofundar algumas das áreas mais sensíveis da geografia cultural e moral, em sentido amplo, da contemporaneidade portuguesa e mundial.

A primeira razão reside na própria qualidade intrínseca deste trabalho. Não se trata apenas de um monumental estudo académico, e isso já seria muito. Este livro, nascido de um esforço titânico, persistente e articulado de investigação da sua autora ao longo de muito anos, facto que a sua juventude torna ainda mais notável, surpreende por uma energia manifesta ao longo de todo o texto, que me parece justo poder designar como possuindo uma generosa vibração épica. A indagação pelos direitos humanos está contruída como uma viagem, onde se misturam as raízes, a nostalgia das origens e possibilidades sonhadas, mas também a perspetiva de um destino por cumprir, mesmo que essa realização consista numa sempre e incompleta aproximação ao destino. Assim como Ulisses ansiava por regressar a Ítaca, mas teve de passar por uma década de deambulações e aventuras, cada uma delas com a sua trama específica, este livro revela-nos o sinuoso percurso das lutas pelos direitos humanos, colocando-nos no centro dos debates teóricos, mas também na proximidade de personagens de carne e osso que arriscaram a vida por aquilo que acreditavam serem os melhores valores. Não apenas para si, mas para a sua ideia de humanidade. A riqueza plena deste livro não permite atalhos. Quem se ficar pelo enunciado inicial das teses, ou pela síntese conclusiva, perderá o fascínio aventureiro das bifurcações e encruzilhadas desta odisseia, universal e nacional, em busca da dignidade e identidade humanas.

A segunda razão que torna obrigatória a leitura deste livro habita na consistente hipótese de trabalho que o move, declinada depois em vários segmentos e num desenvolvimento que lhe é totalmente fiel e coerente. No espaço cultural do Ocidente, os direitos humanos, mesmo quando a sua demanda se escondia debaixo de outros nomes, brota claramente de um impulso utópico que, como escreveu um dos mestres maiores da utopia no século XX, Ernst Bloch, é inerente à condição universal da consciência humana, sempre projetada para a antecipação do futuro. A novidade aportada pela modernidade – estudada no livro até à proximidade do nosso presente, onde a sua força se continua a propagar – fez armar a utopia com meios e crenças na possibilidade da sua realização concreta. Grandes transformações teológico-filosóficas, como a secularização e o niilismo, entrosam-se com a crescente força atrativa de utopias incorporando em si uma Weltanschauung. Não como imagem de um mundo já constituído, mas sim como proposta ousada de um mundo em processo de devir, abrindo-se para a emancipação e o alargamento das possibilidades da condição humana. Os direitos humanos transformaram-se numa dessas utopias realistas (atravessando até visões do mundo parcialmente rivais) que nos trouxeram até onde mos encontramos. De destacar o notável contributo de Portugal para esta história intelectual do Ocidente e do nosso mundo global. Susana Mourato Alves-Jesus acompanhou e participou num importante esforço de superação de um longo e estranho fenómeno de colonização por esquecimento e indigência periférica, em que o cultivo da história das ideias e da cultura em Portugal se deixou submeter. Este livro participa nesse enorme esforço de resgate documental e reinterpretação crítica da nossa memória coletiva a que académicos de várias disciplinas e respetivos projetos de investigação se têm dedicado. É justo mencionar, também pelo seu impacto positivo nesta obra, os contributos de Henrique Leitão para a compreensão do papel de Portugal, e também da Península Ibérica, na formação e difusão global das ciências experimentais modernas, de Pedro Calafate, na identificação das origens – no seio da Escola Ibérica da Paz – dos fundamentos tanto do direito internacional moderno como de uma filosofia dos direitos humanos, e de José Eduardo Franco, na edição critica de obras fundadoras em língua portuguesa de diversas disciplinas e saberes científicos, bem como pela complexa tarefa de coordenação da edição de Obras Completas, como é o caso do Padre António Vieira.

Finalmente, este livro destaca-se, igualmente, por terminar com um convite a outros investigadores para a continuação da tarefa que ele tão vigorosamente iniciou. Na verdade, depois da era dos deveres e da breve era dos direitos, a questão essencial dos direitos humanos, que convoca o futuro da condição humana e da sua “estatura”, para usar uma expressão de Hannah Arendt, coloca-se com uma agudeza intelectual, um dramatismo ontológico, e uma angústia moral sem paralelo na história da nossa espécie. A utopia dos direitos humanos desaguou na distopia do nosso mundo atravessado pela incerteza existencial, baloiçando entre a síncope da uma guerra nuclear de extermínio e a acelerada degradação do Sistema-Terra, pelos sintomas de uma crise ambiental e climática que ameaça destruir as condições de possibilidade biofísicas da própria existência de uma vida humana digna de ser vivida. Num momento da história em que a própria habitabilidade do Planeta e a existência física da humanidade jazem sob o espetro da guerra e do colapso, teremos de reconhecer que, no final provisório da estrada da modernidade, não é uma vida melhor, mas a mais rude pulsão de morte que parece estar à frente na corrida pelo futuro. Os direitos humanos não precisam só de entrar na era da responsabilidade, como propôs Hans Jonas em 1979. Quando o que está em causa é o mais fundamental direito humano, o direito à vida, de onde florescem todos os outros. Quando uma poderosa fragilidade ameaça rasurar a Vida da superfície da Terra, essa onde a humanidade repousa as suas raízes e a sua possibilidade de persistir no tempo, então não basta corrigir com responsabilidade o exercício desmesurado e distópico dos direitos humanos. O que precisamos é de repensar. com humildade e sem arrogância, os nossos limites. A tarefa inadiável consiste em levar a cabo o repto lançado por Aldo Leopold, há quase um século: a humanidade não pode continuar a tratar a Terra como uma conquista a ser delapidada conforme a sua conveniência. Pelo contrário, só teremos futuro se, na nossa condição de humanos, nos reconhecermos, humildemente, na nossa pertença a uma comunidade de seres e entidades, de criaturas e processos naturais, de que somos parte integrante e de cujo florescimento em comum dependerá também a nossa viabilidade e sobrevivência.

O que está em causa é a urgência de uma verdadeira era de refundação dos direitos humanos. Este livro já deu os primeiros passos nessa grandiosa caminhada.

Susana Mourato Alves-Jesus, Direitos Humanos em Portugal: História e Utopia. Das Origens à Época Contemporânea, Lisboa, AAFDL Editora, 2023,1036 pp., PVP €27,00.

Viriato Soromenho-Marques

Soromenho-Marques, Viriato, “Direitos Humanos em Portugal. Uma Odisseia de Pensamento e Ação”, Diário de Notícias, 10 de janeiro de 2024, página 33.

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