ECONOMIA DE MISÉRIA, MISÉRIA DE ECONOMIA

O economista Ricardo Reis resolveu investir contra mim numa recente crónica no caderno de Economia do Expresso de 10 de Setembro último. O artigo intitula-se “O Ambiente e a Pobreza”. A sua tese principal seria a de que “não há relação nos dados entre o desenvolvimento económico e os prejuízos ambientais.” O texto é todo ele paupérrimo do ponto de vista de revisão da literatura sobre estes assuntos. Pelo contrário, o teclado de Ricardo Reis é ágil na simplificação ideológica e na caricatura do seu adversário de ocasião. O que escreve sobre mim (até de “nacionalismo” me acusa…), e a descortesia do tom, manifestam o desconhecimento do meu pensamento. Mas o tema, que ele desbarata com pinceladas imprecisas e carentes de rigor, merece bem ser glosado nesta crónica de Ecologia: será possível combater simultaneamente a pobreza e proteger a qualidade ambiental através do crescimento económico? Para os neoliberais como Ricardo Reis a resposta é óbvia: o mercado e os seus automatismos resolverão os dois problemas. Contudo, é dentro das próprias ciências económicas que há quase dois séculos encontramos argumentos fortes que nos convidam a ir em sentido contrário.

A nave Espacial Terra

Poderíamos começar por referir o contributo seminal de Kenneth E. Boulding (1910-1993), um economista que não aceitou a fantasia neoliberal de considerar que a natureza (reduzida a meros “stocks” de matérias-primas e energia) seria um mero sub-sistema da economia. Ele considerava como loucura afastar o pensamento e a práxis económica das limitações impostas pelas leis da física e pelos princípios da termodinâmica. Se continuássemos com uma economia extractivista e predatória passaríamos de uma irresponsável “economia de cow-boy” para a “economia da nave-espacial”, onde viveríamos como astronautas, esmagados por limitações e constrangimentos de toda a ordem (1).

Mas, muito antes de Boulding, já o grande John Stuart Mill (1806-1873) havia advertido que não poderia existir um crescimento material infinito, e que deveríamos abraçar a moderação de um “estado estacionário” (stationary state) no grau de “riqueza” (wealth), sob pena de sermos compelidos a isso pela “necessidade”. Em vez da desmesura, que hoje visivelmente está a destruir o mais profundo funcionamento do “software” do Sistema-Terra, deveríamos embarcar numa organização da vida colectiva voltada para aspectos mais qualitativos, aquilo que ele designava como o aperfeiçoamento da “arte de viver” (art of living) (2).

O Paradoxo de Jevons

Mas um dos autores que mais luz lançou sobre o problema especificamente económico do crescimento, foi William Stanley Jevons (1865-1882). Em 1865 publicou um influente ensaio sobre um tema que desde o final do século XVIII preocupava na Grã-Bretanha alguns meios intelectuais, nos negócios, mas também nas ciências, em particular na geologia: o risco, considerado mais tarde ou mais cedo inevitável, da escassez de carvão levar à paralisia económica e à turbulência social. Jevons, contudo, não escolheu como ângulo o tema da escassez física do carvão, mas o mecanismo que conduz ao risco de escassez económica do recurso. Aquilo que hoje é conhecido em economia como o “Paradoxo de Jevons” (também conhecido como rebound effect) é um dos principais argumentos racionais que desmentem os adeptos da teoria de que o aperfeiçoamento tecnológico e os automatismos de mercado resolveriam o problema da escassez dos recursos. Jevons formula um paradoxo que não pode ser respondido nem pelos neoliberais, nem por alguns economistas da “desvinculação” (decoupling) entre aumento da riqueza e consumo de energia e matérias-primas, através do incremento cada vez maior da eficiência, que, no limite utópico, apontaria para uma “economia circular” (3). Tomando o exemplo do carvão, Jevons chamou a atenção para o facto de que embora há mais de um século todos os avanços tecnológicos nos motores “tivessem sido dirigidos para a economia no consumo de carvão, contudo o uso do motor e as quantidades de carvão consumidas aumentaram pari passu com o seu desempenho económico”. Por outras palavras: os ganhos de eficiência no uso do carvão, tornavam o seu consumo mais barato e isso permitia o aumento da procura numa dinâmica expansiva motivada pelo estrito mecanismo da dialéctica da oferta e da procura (4).

A actualidade do Paradoxo de Jevons está bem patente em muitas áreas da economia real contemporânea, para não dizer em todas. Acompanho Darrin Qualman, a propósito do crescimento exorbitante do transporte aéreo de passageiros ser uma contundente demonstração da validade do Paradoxo de Jevons: Entre 1960 e 2016 a eficiência das companhias aéreas no uso de combustível quase quadruplicou (dados do IPCC). Isso levou à diminuição em 60% do custo de viajar para os passageiros. A combinação de bilhetes baratos, com o aumento da população com poder de compra conduziu a que, globalmente, entre 1960 e 2016, o número de passageiros transportados tivesse aumentado 50 vezes (5).

Não perceber – numa altura em que a crise ambiental e climática está em disruptiva e acelerada expansão – que o crescimento ilimitado, esse postulado sagrado da escola neoliberal, constitui o problema cuja resolução será fundamental para a nossa sobrevivência colectiva como civilização humana, é mais do que um défice de competência epistémica. Persistir no crescimento exponencial, em vez de colocar a nossa imaginação política e social na pista para a sua domesticação, no quadro dos limites biofísicos da nossa morada planetária, é um profundo sinal de indiferença ética perante a maior crise existencial alguma vez já enfrentou. Se não formos capazes de mudar o modo de habitar a Terra, crescendo como cidadãos e dominando as pulsões do consumismo desmesurado, será o próprio colapso a encarregar-se de restaurar o equilíbrio destruído. Nessa altura será demasiado tarde para arrependimentos.

Referências

(1) Kenneth E. Boulding, “The economics of the coming spaceship Earth”, Environmental Quality in a Growing Economy, H. Jarrett (ed.), Washington, D.C., The John Hopkins Press, 1966, pp.3-14.

(2) John Stuart Mill, Principles of Political Economy with some of their Applications to Social Philosophy, (1ª ed.: 1848), New York, Reprints of Economic Classics, Augustus M. Kelley, 1965.

(3) Ernst von Weizäcker, Amory B. Lovins e L. Hunter Lovins, Factor Four. Doubling Wealth, Halving Resource Use, London, Earthsan, 1998.

(4) William S. Jevons, The Coal Question. An Inquiry Concerning the Progress of the Nation, and the Probable Exhaustion of our Coal Mines, London, MacMillan, 2th ed. 1866. Ver também: “On the probable exhaustion of our coal mines” in R. D. Collison Black (ed.), Papers and Correspondence of William Stanley Jevons, London, MacMillan, 1868, vol. 7, pp. 28–35.

(5) Darrin Qualman, “Efficiency, the Jevons Paradox, and the limits to economic growth”, 14 08 2017. https://www.darrinqualman.com/efficiency-jevons-paradox/

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de letras de 22 de Setembro de 2021, pp. 30-31.

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Rui Rocha

Excelente.

José M. Sousa

https://arxiv.org/abs/2108.07847

“Economists’ erroneous estimates of damages from climate change” Um artigo do economista Steve Keen et al. sobre o desgraçado contributo dos economistas neoclássicos para o actual estado das coisas, no que concerne à inacção perante a crise ambiental e climática.

Rui Miguel Serôdio Simões

Excelente resposta, caro Professor. Também não me passaram indiferentes os vários artigos (3) de Ricardo Reis. Publicaram a minha resposta no correio do leitor do Expresso, embora com alguns cortes. Grande Abraço, Professor.
Rui Simões

António Sá

Análise lúcida e bem sustentada, como sempre nos habituaste.
Gostava de pensar com o mesmo otimismo de há 30 anos, mas começo a ver que o colapso é mesmo inevitável: o consumo é uma droga e vamos morrer de overdose. Pode ser que Rutger Bregman me faça mudar de ideias , quando acabar de ler o seu “Humanidade, Uma História de Esperança”.

Guilherme

tambem respondemos pela rede para o decrescimento:
https://www.decrescimento.pt/posts/o-medo-ao-servico-do-crescimento-economico/
!!