DIZER ADEUS A “MR. CHANCE”

A decisão do juiz Ivo Rosa parece ter desencadeado uma espécie de alerta geral em relação ao estado calamitoso da III República. Como a opinião é tão gregária quanto os primatas falantes que no fundo somos, há uma tendência, a que nem os mais sensatos escapam, para o clamor se transformar em vozearia. Gostaria de deixar ao leitor três reflexões, que espero moderadoras.

Primeira. Em política, como em quase tudo na vida, a valoração implica comparação. Com todos os seus defeitos, a III República resiste ao confronto com uma grande parte dos regimes actuais dentro da UE, e está num patamar muito superior tanto em relação ao Estado Novo como à I República. Será preciso recordar o que eram os tribunais plenários e uma Justiça obedecendo disciplinadamente aos desígnios do governo, assumindo-se como parte de um sistema de repressão das liberdades? Por outro lado, a mitologia benigna da I República – que ainda sobrevive contra os factos duros da historiografia – não nos pode fazer esquecer como nesse regime a violência da turba era usada como arma política: já esquecemos, num rol mais vasto de crueldades, os cadetes e professores desarmados da Escola de Guerra, envoltos na bandeira nacional, fuzilados por populares num golpe do Partido Democrático em Maio de 1915?

Segunda. A corrupção nas democracias representativas – o menos mau de todos os regimes imperfeitos, recordando Churchill – não tem patente portuguesa, é um mal endémico da frágil condição humana. John Rawls escreveu em 1999 que o Congresso dos EUA se tinha transformado num leilão onde as leis eram compradas e vendidas. Mas já em 1819, Benjamin Constant explicava, profeticamente, que num mundo onde a riqueza material crescia exponencialmente, a venalidade dos políticos profissionais iria seguir o mesmo caminho, se não se erguesse o contrapeso duma cidadania activa. Em vez de bodes expiatórios individuais, importa exigir aos partidos, em especial ao PS e PSD, actos concretos para barrar a promiscuidade entre política e negócios. O que pensam eles, por exemplo, da sensata proposta da Associação dos Juízes Portugueses contra o enriquecimento sem explicação de detentores de cargo públicos? O imobilismo parlamentar nesta matéria é um dos alimentos da demagogia da extrema-direita.

Terceira. E José Sócrates? Não constituirá a sua atitude de efabulação narcisista, tanto dos actos como primeiro-ministro, como de outros episódios biográficos – desde a alegada licenciatura aos livros que outros escreveram em seu nome – um desafio à paciência do cidadão mais tranquilo? Acredito que sim, mas daí não se pode passar à sua diabolização. Em Sócrates manifesta-se uma penosa busca de grandeza, que parece esconder a fragilidade de alguém que só ganha alma na vibração do aplauso ou apupo públicos. A maior tragédia associada ao seu nome não é a pessoal, mas a de Portugal inteiro. Como na comédia de Hal Ashley, Bem-Vindo Mr. Chance (1979), que deu um merecido Óscar a Peter Sellers, os erros de casting são sempre o resultado de uma imensa e longa teia de cumplicidades e omissões. O que nos incomoda em Sócrates é ele ser o espelho da nossa cultura política, pobre no zelo pelo bem-comum e prisioneira da gratificação imediata. A perpetuidade previsível deste caso, que a todos envergonha, talvez nos ajude a ganhar coragem para passar da indignação à acção reformadora que urge. Deixemos a justiça fazer o seu trabalho. Os desafios titânicos de Portugal estão à nossa frente.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 17 de Abril de 2021.

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