Na mesma altura em que o governo alemão estava reunido para deliberar sobre o pacote de estímulos para a recuperação da economia, anunciado em Junho, era inaugurada perto de Dortmund uma central eléctrica a carvão novinha em folha (a pior opção em matéria de combustíveis fósseis). Não poderia existir melhor exemplo para moderar o entusiasmo que se possa ter com a cuidadosa imagem de campeão ecológico que a Alemanha tem vindo a construir no mundo desde há décadas. Em relação a outros países perto da sua dimensão, Berlim tem dados passos positivos, sem dúvida. Mas o ritmo da mudança, na Europa e no resto do mundo, é demasiado lento, comparativamente com aquilo que seria necessário fazer para evitar os golpes duríssimos que, nos próximos anos e décadas, colocarão à prova a solidez dos Estados e em grave risco a segurança e vida dos cidadãos. A Alemanha continua a depender do carvão para produzir 50% da sua electricidade. Os governos de todo o mundo gerem os compromissos de vários sectores da economia. São sensíveis aos grandes e poderosos interesses. Dependem dos eleitores que os escolheram e vão escolher. Numa altura de emergência como é o caso desta crise pandémica, e num deserto mundial de excelência política (com excepção, talvez, da Nova Zelândia), para os políticos normais (já não falo dos fora de métrica, como Trump e Bolsonaro…) entre escolher uma longa e esforçada política que impeça o futuro de desaguar nos portões do inferno, e satisfazer de imediato as clientelas do presente, a opção vai para o que é mais fácil e de recompensa pronta.
As notícias que vão chegando do regresso à “normalidade” não nos iludem. Os países despejam décadas de futura dívida pública para apoiar os sectores que nos estão a conduzir para o beco sem saída da emergência climática e do colapso ambiental. O próprio BCE, desde Março já aceitou como contrapartida colateral, activos de empresas de combustíveis fósseis no valor de 7 mil milhões de euros. Lisboa parece querer injectar mais de mil milhões na TAP, sem sequer interferir na gestão da empresa. A Lufthansa recebeu um cheque federal de 9 mil milhões, num quadro alemão de apoio às empresas que já é igual a 50% de todas as ajudas de Estado aprovadas nos 27 países da UE pela Comissão Europeia. Aparentemente, o único gesto de coragem política do governo de Angela Merkel ocorreu no confronto com a menina dos olhos da economia alemã: a indústria automóvel. A chanceler recusou estender o aumento do subsídio à compra de viaturas eléctricas (de 3 000 para 6 000 euros) – uma medida que visa aumentar uma mobilidade menos nociva do clima e da saúde pública – às viaturas movidas a diesel e gasolina. Importa ter presente que a indústria automóvel na Alemanha representa 40 000 empresas e 1,3 milhões de empregos. Apesar da aposta eléctrica, 90% dos veículos produzidos ainda dependem de combustíveis fósseis. Os Estados federados da Baviera (onde a BMW e a Audi têm a sua sede) e da Baixa Saxónia (sede da VW), dirigidos pela CSU e pelo SPD, defendem fortemente a posição da indústria. Não foi muito, mas vai na direcção certa.
Na edição do passado 11 de Fevereiro, antes da eclosão da pandemia, escrevi nesta crónica, a propósito do Pacto Ecológico Europeu, que era na altura a grande bandeira da CE de Ursula von der Leyen: “Sem a existência de um forte sobressalto de cidadania europeia, resiliente e transgeracional, pressinto que o Pacto Ecológico Europeu, ao próximo solavanco do sistema financeiro internacional e europeu, não demorará muito a cair do topo da agenda política. Mais uma vez, gostaria de não ter razão.” Infelizmente, a pandemia é muito mais do que um “solavanco”. A dispendiosa reconstrução da normalidade, não parece ir além do regresso à distopia de uma modernidade que continua a ignorar os limites da Terra, e persegue um crescimento autofágico, como se não houvesse amanhã. Recordo uma fotografia tirada no passado dia 1, junto à Porta de Brandeburgo, em Berlim. Uma jovem estudante liceal, Luisa Neubauer, integrada num dos muitos movimentos inspirados por Greta Thunberg, erguia um cartão onde se podia ler: “O que é que ainda não perceberam acerca da crise climática?”. Apetece juntar uma outra questão: o que é que ainda não percebemos sobre os motivos que nos levam a não querer perceber?
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras de 17 de Junho de 2020, página 26
It didn’t came from the Government down. There was no dictum, no declaration, no censorship, to start with, no!
Technology, mass exploitation, and minority pressure carried the trick(…)
Ray Bradbury “Fahrnheit 451”