AMBIENTE, PANDEMIA E O RETORNO DO TRÁGICO

Na altura em que escrevo já são mais de dois mil milhões, os seres humanos que se encontram sob um qualquer regime de confinamento obrigatório face ao novo coronavírus. Mesmo assim, em cada minuto aumentam os infectados e os mortos. Até em nossas casas estamos vulneráveis aos estilhaços desta pandemia que veio baralhar os dados da história mundial. Durante muitos meses, não teremos outro assunto para pensar e discutir. Não o fazer, seria, no mínimo, um inaceitável sinal de cobardia. Neste ensaio iremos enunciar três teses preliminares a outras crónicas que conto poder escrever.

Primeira tese. Esta pandemia tem raiz na crise global do ambiente. O impacto da crise ambiental está presente nas origens desta pandemia pelo menos a dois níveis. As alterações climáticas afectam a distribuição geográfica das doenças, sobretudo daquelas que são transmitidas por vectores (dengue, malária, etc.), tem também influência sobre os habitats e a própria saúde das espécies, em grau ainda difícil de determinar. Contudo, no que diz respeito à depleção da biodiversidade pela intrusão humana, a relação directa entre crise ambiental e a eclosão da Covid-19 é evidente. Desde 2003 tivemos várias epidemias com origem em vírus que são transmitidos de animais para o homem (zoonose): a SARS (2003), com origem também na China, e a MERS (2012), com epicentro no Médio Oriente. Ambas transmitidas também por diferentes tipos de coronavírus. Não sendo desta família, o vírus da gripe suína H1N1 (2009-2010), também é zoonótico. Foi transmitido do porco e de aves, tendo por fulcro o México. A pressão sobre as espécies e a crueldade sobre os animais, como é o caso dos hediondos mercados de animais selvagens vivos na China, ou de muitas indústrias de produção de carne são inseparáveis da terrível constatação de que 75% das novas doenças têm origem nesse perigosíssimo salto entre espécies.

Segunda tese. O que faz a diferença desta pandemia. Todos os cenários desenhando perigos aportados pela crise ambiental e climática incluem os riscos para a saúde pública, às escalas regional e mundial. Contudo, poucas pessoas tiveram a clarividência de Bill Gates que, numa conferência em Março de 2015, alertou para a ameaça de uma pandemia violenta, capaz de causar milhões de mortos. Chegou mesmo a identificar a possibilidade de um vírus (por mutações não intencionais ou por bioterrorismo) tornar-se particularmente mortífero por apresentar um período longo de incubação no corpo do hospedeiro humano, antes de apresentar sintomas, aumentando assim a taxa de contágio, que é o que sucede com o vírus causador da Covid-19.

A principal diferença entre esta pandemia e os acontecimentos catastróficos associados à crise ambiental e climática reside na sua simetria e universalidade de distribuição do contágio e, potencialmente, dos impactos que lhe estão associados, assim como na sua quase sincronia expansiva. Pelo contrário, as consequências da maioria dos eventos extremos que já estão a ser sentidos em virtude das alterações climáticas têm características localizadas e assimétricas. O Katrina foi terrível para New Orleans. Os grandes incêndios foram terríveis para Portugal (2017) para a Califórnia (2018) e para a Austrália (2019). As ondas de calor podem atingir vastas zonas (Europa, 2003), mas nunca são globais. Aliás, essas características têm encorajado a ideia – no limite falsa – de que haverá vencedores e perdedores no processo das alterações climáticas. Alguns governos, completamente capturados por sectores industriais, como é o caso do poderoso lóbi do carvão na Austrália, preferem investir em programas “egoístas” de adaptação, por essência de alcance meramente local, em vez de fazerem reformas no sentido da mitigação, quer dizer da redução das emissões globais de gases com efeito de estufa.

Esta pandemia revela com inequívoca evidência – pela sua brutalidade, rapidez, elevada mortalidade e impacto incalculável na destruição do tecido económico – a natureza colectiva das ameaças e perigos existenciais qu estamos e iremos enfrentar. Estamos todos, de facto, no mesmo barco. E este já entrou num oceano cheio de tempestades.

Terceira tese. O neoliberalismo deixou a política em estado comatoso. Quase 40 anos de pandemia neoliberal, atacando as mentes, os corpos e as instituições deixaram-nos, aos povos do mundo, sem sistema imunitário político e estadual para enfrentar esta pandemia em sentido estrito. O narcisismo patológico de Trump, ou a estupidez cósmica de Bolsonaro, são apenas a ponta do iceberg. A experiência vivida por António Costa perante as “repugnantes” declarações de um insignificante ministro das Finanças holandês, ilustram o egoísmo, a cegueira e a miséria moral e intelectual de grande parte das lideranças na União Europeia. Uma década de austeridade severa deixou os sistemas de saúde enfraquecidos. Não só em Portugal, mas também em quase toda a Europa. Contudo, a questão não é só a debilidade no “hardware”, é também a ligeireza no “software” das políticas e dos políticos. No final de Março, o jornal britânico Telegrah revelava um explosivo exclusivo: em Outubro de 2016 realizou-se na Grã-Bretanha um teste de três dias ao Serviço Nacional de Saúde britânico (o NHS), coordenado pelo Imperial College. Essa espécie de “jogo de guerra” simulava uma epidemia gripal intensa. O resultado foi catastrófico. O NHS tinha falta de tudo, a começar por equipamento básico como máscaras e fatos de protecção. Que fazer? Nem uma libra para suprir às faltas. O Governo da senhora May meteu o relatório na gaveta com a classificação de confidencial.

Ninguém sabe quando a primeira vaga desta pandemia irá sofrer uma acalmia. Já nem me refiro ao seu término, que é totalmente impossível de antecipar. O que é certo e seguro é que, depois de décadas vivendo na atmosfera quase narcótica de inconsciência e irresponsabilidade dos “roaring years” de um crescimento exponencial movido pela máquina trituradora do neoliberalismo, chegámos a uma situação em que a humanidade se encontra em vertiginosa rota de colisão com o Sistema-Terra. Esta pandemia veio acordar-nos para os duros factos de uma vida onde os actos têm consequências e os erros pagam-se caro. Estamos de regresso ao sentido trágico da existência. À dura experiência da nossa interdependência e da nossa vulnerabilidade. Estamos de regresso à realidade. O único lugar onde a nossa humanidade pode florescer e transcender-se.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 8 de Abril de 2020, pp.27-28

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