ADRIANO MOREIRA: UM SÉCULO PORTUGUÊS NA VERTIGEM DO MUNDO

Poucas personalidades têm a fortuna de projetar a sua idade biográfica na escala dos séculos, que é o tempo próprio apenas de povos e civilizações. Ainda menos são aquelas que pelo seu pensamento e intervenção na realidade se transformam numa fonte incontornável para o debate onde se consolida a memória comum e se forma a movente consciência coletiva. No caso português, essa personalidade parece-me coincidir com a figura complexa e multifacetada de Adriano Moreira (doravante, AM), que hoje completa um século de existência.

Seis períodos de um percurso

Uma vida tão longa pode ser dividida em diferentes períodos. Contudo, desde a conclusão da sua licenciatura em Direito, no distante ano de 1944, até aos dias de hoje, temos na sua vastíssima obra – concretizada, entre outros modos de expressão, em ensaios, tratados e artigos académicos, pareceres e diplomas jurídicos, conferências, intervenções parlamentares, crónicas de imprensa, entrevistas – um testemunho continuado da sua meditação sobre o mais vertiginoso século da história humana, tendo como fulcro essencial, mas sempre em diálogo com todos os outros nexos de interesse global, o destino de Portugal, como povo e cultura. Uma preocupação com o país, que integra e articula uma necessidade de compreender a (des)ordem do mundo, as suas contradições, as suas tendências e ciclos. É nessa avaliação do todo englobante, que Adriano Moreira tenta situar o que ameaça Portugal e o que o país pode esperar. Isso constitui uma espécie de método, que com modulações, mas sem rutura, poderemos encontrar em todas as fases do seu percurso. Primeiro, no período de formação académica e início da carreira profissional, até final da década de quarenta. Segundo, numa etapa fundamental de amadurecimento e consolidação de uma vocação universitária atenta aos problemas mais agudos do país, onde a teoria e o trabalho de campo se completam, até final da década de cinquenta. Terceiro, no mais breve, intenso e marcante entrosamento da sua vida pessoal com a do país, entre 1960 e 1962, como responsável da política ultramarina, quando as placas tectónicas da história mundial retiravam a base de sustentação do Euromundo, essa mistura de sonho e pesadelo dos impérios europeus. Quarto, na longa travessia do deserto, nessa espécie de exílio interno nos últimos doze anos do Estado Novo, a que se junta o exílio propriamente dito, no Brasil, após a revolução de 25 de Abril de 1974. Quinto, no seu regresso a um país que o acolheu e redescobriu, como professor, líder político e deputado na Assembleia da República, entre 1980 e 1995. Sexto, na transformação do que poderia ser um tempo de merecido repouso, numa contínua e generosa disponibilidade para aceder a múltiplas solicitações e convites das mais diversas instituições, para partilhar o seu saber.

A Prova de fogo do Ultramar

Em 1962, no segundo e derradeiro ano de desempenho das funções de ministro do Ultramar, AM faz publicar uma obra sob o título Batalha da Esperança (Moreira, 1962) onde não só justifica os motivos das suas profundas reformas na política ultramarina, como transcreve em anexo alguns dos principais diplomas que a serviram. Significativamente, o autor apresenta-se na capa, não como Ministro do Ultramar, mas como professor do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (ISEU). Este facto é fundamental para perceber os limites da aceitação, por parte de AM, do convite que lhe foi dirigido por Salazar, ainda em 1960, para integrar o governo na condição de subsecretário do então ministro da pasta do Ultramar, almirante Lopes Alves, já na altura com graves problemas de saúde. A ligação de AM ao Ultramar foi realizada por via universitária e não por pertença aos círculos do regime. Pelo contrário, em 1947, AM, na condição de jovem advogado, havia sido encarcerado abusivamente por dois meses na prisão do Aljube, por ordem do ministro da Guerra Santos Costa, no caso de habeas corpus do malogrado general Mendes Godinho. Foi aí, aliás que, conheceria Mário Soares (Moreira, 2014: 48-58). Desde que em 1950, por convite do professor Mendes Correia, entrara para a Escola Superior Colonial (que passaria a ISEU em 1954), tinha-se dedicado profundamente ao estudo das questões coloniais, numa perspetiva ampla, jurídica e histórica, mas também cada vez mais voltada para outras ciências sociais. Por encomenda do almirante Sarmento Rodrigues, então ministro do Ultramar, AM percorre Angola e Moçambique em 1953, investigando o sistema prisional em busca de vias para a sua reforma. Nesse âmbito publica, em 1954, uma dissertação que seria premiada pela Academia das Ciências de Lisboa: O Problema Prisional do Ultramar. Em 1956, AM preside ao Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigação Científica do Ultramar Português. Em 1958, com a saída de Mendes Correia, acumulará esse cargo com a presidência do ISEU. Como Manuel Lucena refere no seu notável estudo sobre a biografia de AM neste período, na sua numerosa bibliografia produzida na década de 50, as críticas à realidade colonial portuguesa abundam, assim como a sugestão de caminhos de mudança (Lucena, 2015, 284-299). Na condição de perito, AM passará, entre 1956 e 1959, a participar em reuniões internacionais, nomeadamente, integrando a delegação de Portugal nas Assembleias Gerais da ONU em Nova Iorque. Conhece muita gente, percebe outros pontos de vista. Compreende que num mundo tão vasto e em mudança, a intransigência não pode substituir a urgência da compreensão. Apercebe-se da sonolência do governo português perante a transformação de antigas colónias em novos Estados, e o modo como os anseios de autodeterminação vão afetar a geopolítica mundial, deixando Portugal cada vez mais isolado, mesmo perante alguns dos aliados da OTAN, em particular os EUA.

Reformas em tempo de guerra

Entre 13 de Abril de 1961 e 4 de dezembro de 1962, AM assumiu a pasta do Ultramar. O início das ações militares do MPLA, em 4 de fevereiro, mas sobretudo a enorme violência dos massacres organizados pela UPA (futura FNLA) contra colonos e seus trabalhadores, de 15 a 17 de março, ceifando mais de 5 000 vidas no Norte de Angola (principalmente no Uíge, Zaire, Cuanza Norte e Bengo), veio criar uma atmosfera febril de alarme nacional. Foi nesse clima que a intempestiva tentativa palaciana do general Botelho Moniz para afastar Salazar, suportada de modo indiscreto pelos EUA, fracassou sem um tiro, produzindo o efeito contrário (Meneses, 2010: 499-521; Soromenho-Marques, 2009: 616-621). O início da guerra em Angola revelava a fragilidade administrativa e militar do Estado português. Só em outubro desse ano, a UPA seria desalojada das últimas povoações conquistadas a Norte.

Nesses quase dois anos, ligado ao exercício das funções ministeriais apenas pela promessa de suporte que lhe havia sido dada por Salazar, AM desempenhará um trabalho frenético e incansável, tornando-se, nesse período, talvez no ministro mais conhecido do público português e com mais ressonância internacional (Meneses, 2010: 622-3). Embora as viagens ao Ultramar fossem fundamentais para compensar com ânimo a falta de meios, AM lançou um ambicioso conjunto de reformas centradas no combate pela promoção social das populações nativas africanas, contrariando os interesses económicos instalados, sobretudo aqueles ligados à agricultura e à mineração. Em grande medida, os diplomas publicados em 1961 e 1962, visavam abolir o exacerbado colonialismo extrativista europeu, nascido da Conferência de Berlim (1884-1885), e que tinha sido adotado, num triste consenso nacional, tanto no final da monarquia constitucional como depois pela I República e pelo Estado Novo. Muitas das ideias postas em letra de lei, já tinham sido escutadas por AM na voz e na escrita de D. Sebastião de Resende, bispo da Beira, em Moçambique, que desde 1946 pugnava contra o pressuposto racista patente no Estatuto dos Indígenas, contra o trabalho forçado e as culturas obrigatórias (Moreira, 2019: 402-408: Lucena, 2015: 284-5). As medidas legislativas publicadas por iniciativa de AM procuram acabar com a discriminação entre indígenas e cidadãos, respeitar a propriedade tradicional, os usos e costumes locais, legalizar as milícias nativas como “corpo militar de 2-ª linha”, conferir a liberdade de circulação a todos os cidadãos em território nacional. Em 27 de Abril de 1962 é publicado, depois de uma conferência de imprensa televisionada no dia anterior, o Código de Trabalho Rural, que ao corresponder aos requisitos da Organização Mundial do Trabalho, e ao tentar evitar que a “economia de mercado” esmagasse a “economia de subsistência”, deixaria a África do Sul preocupada, e revoltadas muitas das “forças vivas” internas, lesadas pelos novos direitos laborais dos africanos (Moreira, 2014: 77).

Não surpreende que no final de 1962, aproveitando um conflito entre AM e o governador-geral de Angola, general Venâncio Deslandes, Salazar tenha exigido a mudança de rumo (Pereira, 2022:28-9). AM recusou e saiu do governo, voltando à vida académica. Ele sabia que as suas reformas já tinham chegado tarde, não podendo por isso ser adiadas. Salazar, depois da tempestade de 1961, concluída com a invasão de Goa pela União Indiana, sentia que a situação militar em África estava sob controlo. Como tantas vezes acontece com líderes autoritários, Salazar esqueceu a lição de Clausewitz, de que a guerra, para não se transformar num sangrento absurdo, deverá ser um meio temporário ao serviço de objetivos políticos. Embarcando, com os seus mais fiéis correligionários, na tese de que nada de substancial haveria a mudar, Salazar colocou a política ultramarina ao serviço de uma guerra tendencialmente interminável, deitando a perder 13 anos de sacrifício de centenas de milhares de militares portugueses (Nogueira, 1971: 539-541). Ao longo dos anos, para vagas sucessivas de jovens oficiais milicianos, essa guerra de objetivo irrealista e duração indefinida, confundia-se cada vez mais com a obstinada vontade de sobreviver de um regime político esgotado e crispado, incapaz de estabelecer sintonia com os clamores por maior liberdade que cresciam no país e no mundo. As tragédias humanas que acompanharam a descolonização depois do 25 de Abril de 1974, incluindo muito das sangrentas guerras civis que se seguiram nas antigas colónias, tiveram raiz na bizarra utopia, abraçada por Salazar e pelo seu regime, de que uma vontade absolutamente intransigente pode deter o curso da história.

Navegar na crescente anarquia mundial

Ser capaz de aceitar uma derrota concreta para se manter fiel a um princípio estratégico de longo alcance, parece-me ser um sinal de rara grandeza. O projeto de reforma ultramarina baseava-se no mesmo pressuposto que tem animado o pensamento de AM ao longo de toda a sua vida, a crença na unidade do género humano, por oposição ao darwinismo social que, com ou sem disfarce, tem hegemonizado globalmente a vida económica e política desde o final do século XIX. A recusa do imobilismo era acompanhada em AM pela recusa de um modelo de dominação branca, como na Rodésia e na África do Sul. A unidade da humanidade implica, na linha do ensinamento do Padre António Vieira, o abraço da justiça e da paz, mas tem de ser a justiça, contudo, a tomar a iniciativa desse abraço. Por esse motivo, AM saudaria os recentes estudos que nos ajudaram a reconstituir o perfil de uma autêntica Escola Ibérica da Paz. De Francisco de Vitoria a Vieira, entre 1511 e o final do século XVII. Com efeito, a recente tradução do latim de lições e cursos lecionados em universidades peninsulares, onde se incluem também Coimbra e Évora, tem-nos oferecido uma verdadeira teoria dos direitos humanos e das relações internacionais, a ideia de um direito para uma comunidade universal (societas gentium), desenvolvida sobretudo por mestres e teólogos franciscanos e jesuítas. Esse esforço foi produzido também como resistência e condenação dos abusos dos conquistadores e colonizadores peninsulares, sobretudo em terras americanas (Moreira, 2019: 235-249; Calafate e Mandado, 2014).

Nessa permanente procura de uma estratégia de longo prazo, onde se combinam o realismo da análise concreta dos meios com o idealismo dos fins que os justificam, AM tem procurado um novo conceito estratégico para Portugal, depois do crepúsculo do Euromundo. O seu interesse pelos assuntos europeus é outra vertente permanente do seu pensamento. Ainda como ministro do Ultramar, inspirou a criação de um Centro Português de Estudos Europeus. Acompanhou com entusiasmo e admiração os primeiros passos da reconstrução europeia, sob o impulso de Jean Monnet e outros líderes que procuravam vencer os “demónios” que insistem em devastar periodicamente a Europa. A UE foi a mais recente satisfação do “apoio externo de que sempre Portugal necessitou”. Contudo, tal não basta. O país necessita de procurar outras “janelas de liberdade”: a) educação e cultura da população b) CPLP e língua portuguesa; c) O mar; d) As redes de segurança pela centralidade de Portugal na conjugação do Atlântico Norte, do Mediterrâneo e do Atlântico Sul. Portugal, nessa medida, é um “Estado de fronteira” com uma posição central na tripla segurança desses dois Oceanos e do Mediterrâneo. O Atlântico Sul é mesmo definido como um “Oceano Moreno”. Mas o futuro do país passa também pela esfera do espírito e da cultura, nomeadamente, pela língua: “A língua portuguesa não é nossa, também é nossa”. Outra fronteira onde se joga o futuro de Portugal é a deslocação para Norte da fronteira da pobreza. AM adverte para o papel do Estado na salvaguarda da “autonomia estratégica alimentar”, no quadro de uma crise ambiental e climática em intensificação. Alerta para a fragilidade de um sistema constitucional que se revelou, nas maiorias absolutas, como um “presidencialismo de primeiro-ministro”. Há tarefas que só nós podemos realizar a favor da nossa vida coletiva. Não podemos consentir que o despovoamento e o abandono do magro interior de Portugal, se continue a afirmar como uma política pública, talvez a confirmar a tendência que Unamuno encontrava nos portugueses para o suicídio. Para enfrentar os desafios e as incertezas existenciais falta também um verdadeiro conceito estratégico europeu. Os anos da crise do euro, manifestaram o regresso da secular tentação europeia dos diretórios, esmagando uma solidariedade fundada na lei e nos objetivos comuns. O ameaçador regresso da guerra à Europa, confirma também o diagnóstico de AM de que “vivemos perigosamente” numa Europa sem talento para transformar o fim da guerra-fria numa paz consolidada e duradoura (Moreira, 2011; 81-93 e 121-126; Moreira, 2016: 81-89).

Revisitar o pensamento, a ação e o método de AM, neste tempo de profunda deterioração anárquica do que sobra do “sistema internacional”, é muito mais do que uma merecida homenagem. Constitui também uma inspiração para a necessidade de manter a lucidez, se quisermos preservar alguma capacidade de improvisar uma bússola capaz de nos conduzir a um futuro comum. Esse horizonte de esperança, que tantos insistem, por atos e omissões, em tornar inabitável.

Bibliografia referida

Calafate, Pedro e Ramón E. Mandado Gutiérrez, Escola Ibérica da Paz 1511-1694. A Consciência Crítica da Conquista e Colonização da América, edição bilingue: português e castelhano, Santander, Ediciones Universidad Cantabria, 2014.

Lucena, Manuel de, Os Lugar-Tenentes de Salazar. Biografias. Armindo Monteiro. Pedro Theotónio Pereira. Alberto Franco Nogueira. José Gonçalo Correia de Oliveira. Adriano Moreira, Lisboa, Alétheia Editores, 2015, pp. 265-371.

Moreira, Adriano, Batalha da Esperança, Edições Panorama, 1962.

Moreira, Adriano, Da Utopia à Fronteira da Pobreza, Lisboa, INCM, 2011.

Moreira, Adriano (com Vítor Gonçalves), Este é o Tempo. Portugal, o Amor, a Política e Salazar, Lisboa, Clube do Autor, 2014.

Moreira, Adriano, Portugal e a Crise Global. Só a Águia voa sozinha, Coimbra, Almedina, 2016.

Moreira, Adriano, A Nossa Época. Salvar a Esperança, Lisboa, Sílabo, 2019.

Nogueira, Franco, As Crises e os Homens, Lisboa, Ática, 1971.

Meneses, Filipe Ribeiro de, Salazar. Uma Biografia Política, tradução do inglês de Teresa Casal, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2010.

Pereira, Bernardo Futscher, “Adriano Moreira e general Deslandes demitidos por Salazar”, Jornal de Letras, 24 de agosto de 2022, pp. 28-29.

Soromenho-Marques, Viriato. Antiamericanismo. A Hostilidade Improvável”, in Dança dos Demónios. Intolerância em Portugal, coordenação de António Marujo e José Eduardo Franco, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de leitores, 2009, pp. 580-624.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, nas páginas II a IV de uma Separata especial dedicada ao centenário de Adriano Moreira, em 6 de setembro de 2022

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