ADRIANO MOREIRA TESTEMUNHA PARTICIPANTE DA «GRANDE ACELERAÇÃO»

No auge do otimismo ocidental, que envolve quase todo o século XIX, era possível encarar como Auguste Comte o fez, o trabalho académico como um “sacerdócio” laico. A ideia de uma humanidade, que se tinha libertado da tutela de deuses e monarcas, não tinha desembocado ainda num niilismo estéril e sem futuro. Nesse século, o fervor religioso tinha trocado a música da eternidade celeste pelo bulício crescentemente ruidoso da Terra. As esperanças hiperbólicas nas capacidades de uma humanidade capaz de vencer a alienação, as injustiças, e de rasgar o caminho de novos valores, atingiram um registo claramente próximo do sagrado. Solitária dona de uma Natureza, que já não reclamava um tributo a pagar a divindades – entretanto declaradas como ficções definitivamente mortas – a humanidade preparou-se para humanizar a Terra e nela construir a sua versão do Paraíso.

Uma vida no século do Antropoceno

Adriano Moreira está prestes a completar um século de existência. Uma grandeza cronológica com que se designa o tempo dos povos e da história, e muito raramente o dos indivíduos. Um século português e mundial caracterizado pela “Grande Aceleração”. Julgo que é inteiramente adequada a utilização desta designação, que os cientistas Paul Crutzen e Will Steffen, seguindo a sugestão do historiador John McNeill, utilizam para definir a vertiginosa mudança ocorrida no planeta depois de 1950. Embora a cronologia do início do Antropoceno – esse encontro entre a história geológica e a temporalidade humana onde nos encontramos mergulhados – possa ser colocada em 1750, nos primórdios da Revolução Industrial, a verdade é que mais de 90% das mudanças provocada pela humanidade sobre o frágil e delicado tecido vivo do Sistema-Terra ocorreram nos últimos 70 anos. Neste tempo de crise ambiental e climática, de pandemia, de guerras convencionais que podem escalar para o patamar atómico, de desigualdade crescente, de fome expansiva, o menos que poderemos dizer é que a religião laica do otimismo europeu do século XIX e o seu projeto de humanização da Terra, apresentam um saldo pateticamente medíocre.

No caso de Adriano Moreira, nascido no distante, pobre e conturbado Portugal de 1922, se existe um mote comum ao seu século intenso de vida, ele é o compromisso da dedicação a uma conceção de saber e de Academia totalmente comprometidos com uma ideia de serviço à humanidade, mas sem ilusões de utopismo milenarista. O seu carácter, é marcado pela dupla dimensão de resiliência ética – que evoca o melhor da sólida e sóbria tradição estoica – e pelo exercício do conhecimento, percebido como o único meio humano de conseguir perscrutar o futuro, vislumbrando-lhe os riscos e as ameaças que, se bem identificadas, poderão ser neutralizadas, ou minimizadas, para o bem-comum. Nada perceberemos desta personalidade, que constitui, talvez, o mais singular observador interveniente da história do último século português, sem esta unidade da teoria e da prática, sempre com esta a ser iluminada pela primeira, e a teoria a ser validada e afinada pela prática. Por isso, a vida de Adriano Moreira – incluindo a sua acção política como Ministro do Ultramar no Estado Novo ou dirigente partidário e deputado na Assembleia da República na III República – está totalmente vinculada a uma conceção de saber a uma ideia do papel das Universidades e das Academias de Ciências, as instituições que mais se aproximam (apesar dos solavancos e imperfeições inerentes a todas as criações humanas) desse ideal de uma vida, pessoal e coletiva, que é capaz de se criticar e corrigir a si própria, antecipando ameaças e vencendo desafios.

A origem das Academias das Ciências, nos mais diversos países europeus, terá tido na imaginação dos Modernos a sua força propulsora. Francis Bacon começou a escrever a sua New Atlantis – uma obra utópica sobre o papel da ciência e da técnica na reorganização das sociedades humanas – por volta de 1623. De acordo com algumas pistas biográficas, esse impulso para tornar visivelmente dramáticas as expectativas de um novo mundo, onde a tecnociência elevasse a uma escala nunca testemunhada o “império humano” sobre a Natureza, teria nascido, como reacção imediata, a partir do contacto que o sábio britânico tomou com a edição da Civitas Solis, do infeliz Tommaso Campanella, obra que havia sido dada à estampa, em Frankfurt, também nesse ano de 1623. Tanto Bacon como Campanella partilharam uma visão épica acerca do valor da ciência como catalisador da história humana. Ambos acreditavam que o seu uso libertaria a humanidade da superstição, da doença, da pobreza, e de muitas outras modalidades de indignidade a cuja sujeição a sempre frágil condição humana parece condenada. Como sempre ocorre, os grandes fundadores tendem a ser imitados com exagero. A desmesura mimética do otimismo científico tornou-se numa ideologia fáustica, numa estratégia de relacionamento com o mundo que não hesitou em prescindir da verdade em prol do incremento do poderio, mesmo que essa predominância sobre as coisas não passasse de um efémero simulacro de sucesso, destinado a terminar de modo catastrófico.

De onde vem a ameaça, vem também o que salva, como nos recorda o imortal verso de Hölderlin. As Academias das Ciências foram e são, também, o lugar onde a procura da verdade tem lugar contra a lógica dos interesses e das conveniências. Contra o sanguíneo entusiasmo das correntes mais fáusticas, as ciências europeias sempre foram marcadas também pelos mais modestos seguidores de Prometeu. A procura de uma vida humana plena e realizada exige uma ampla compreensão dos limites materiais e das condições de possibilidade que a matricial inserção da humanidade nas leis naturais da nossa casa planetária exige. E tal atitude implica uma exigência gnosiológica e prática. Um desafio lançado aos nossos sistemas de conhecimento, mas também às nossas tecnologias e aos nossos modelos de governação. Não há vida sem esperança no futuro. Mas só as esperanças alimentadas pela prudência e moderadas pela sabedoria podem garantir futuro e “sustentabilidade”, palavra, que agora, quando o futuro aparece como minguada possibilidade, não nos cansamos de repetir.

Antecipar os perigos para estar à sua altura

Adriano Moreira, ainda muito jovem, foi chamado a desempenhar funções de elevada responsabilidade no Ministério do Ultramar. Não se tratou de um convite baseado na lealdade política ou ideológica. Tratou-se sim, nesses críticos anos do início da década de 1960, do reconhecimento de que o académico Adriano Moreira era a pessoa mais habilitada no país para compreender a complexidade da situação, e das medidas a tomar, sobretudo quando as decisões teriam de ser aplicadas, literalmente, debaixo de fogo. Ao longo da década de 1950, ele tinha visitado as colónias e, como membro da representação portuguesa na ONU, tinha consciência do estado da arte mundial no que dizia respeito à rápida desarticulação do Euromundo. Conhecia os perigos e tinha propostas para os minimizar. A sua breve passagem pelo cargo deixou, mesmo assim, contributos importantes que, com continuidade e imaginação política, poderiam ter ajudado a um processo de descolonização diferente daquele que veio a ocorrer. Mas, a sua saída, recusando levar a cabo uma política que lhe seria imposta por Salazar, revela também um sinal de sabedoria. O sábio é aquele que conhece os limites do impacto que o seu conhecimento pode causar no mundo. E, sobretudo, sabe que nenhuma ilusão de incerta transformação política pode justificar compromissos, onde se arrisca a integridade do caráter e a serenidade da boa consciência.

A mesma atitude de académico interveniente, perscrutando os perigos e as oportunidades, é aquela que orienta o pensamento de Adriano Moreira, ao longo de mais de três quartos de século, sobre as Universidades, as Academias e a missão do ensino superior no quadro das tarefas sociais do conhecimento. É essa atitude, e os seus correspondentes princípios, que encontramos num texto de 1966. Não partilhando o otimismo desmesurado, reinante nesse tempo já tão longínquo, caracterizado pelo desequilíbrio entre as tecnociências e as ciências sociais e humanas, Adriano Moreira propunha uma reorganização global do ensino e da investigação científica, através da introdução de um Ministério da Ciência e Educação, substituindo o então Ministério da Educação Nacional, mas evitando a pulverização da investigação científica entre duas culturas divorciadas (a das Tecnologias e a das Humanidades). Numa sociedade percorrida por novas e velhas ameaças, o saber deveria ser, cada vez mais, um esforço organizado, interdisciplinar, estratégico, visando a antecipação do futuro. Essa era, aliás, uma das razões principais para a aposta no desenvolvimento das ciências sociais, de que Adriano Moreira seria um dos mais importantes pioneiros em Portugal.

Escutemos estas palavras de Adriano Moreira, que, escritas em 1966, são dramaticamente ainda mais atuais em 2022:

“(…) há um domínio de angústia comum da humanidade que constitui o fulcro da autonomia e do universalismo das ciências sociais: esse domínio é essencialmente preenchido (…) pelos problemas suscitados pelas crises e revoluções contemporâneas, assim como pela evolução das ciências da natureza e das suas técnicas (…) já não são problemas de um ou de cada homem, são problemas do género humano estarrecido com o poder que alcançou, só ultrapassado pela sua ignorância.” (p.1246). (1)

Ninguém sabe qual o desfecho da espiral de entropia em que todos os indicadores de civilização, esse outro nome para a atribulada e declinante habitação humana da Terra, mergulharam há muito, e de forma impossível de ocultar nas últimas duas décadas. Contudo, não houve ausência de avisos sábios e alertas tão esclarecidos como atempados. Escritos em todas as línguas, e também em português, como este texto de Adriano Moreira, publicado há 56 anos, plenamente o comprova. Ao completar um século de existência lúcida e ativa, o seu pensamento, tanto na letra como no espírito, permanece como uma fonte de inspiração para nos ajudar a navegar em tempos difíceis.

  1. Adriano Moreira, “Para um Ministério da Ciência”, Estudos Políticos e Sociais, Revista trimestral do Instituto superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, Lisboa, Volume IV, n.º 4, 1966, pp. 1241-1253.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de letras de 24 de Agosto de 2022, pp. 27, 28 e 29.

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