As eleições espanholas trouxeram alívio, mas não mais do que isso. O aumento sensível de votantes mostrou que, afinal, na casa da abstenção não se recolhiam essencialmente os saudosistas da Falange e do franquismo, mas sobretudo os cansados e desmoralizados da democracia instalada dos negócios e da corrupção. A vitória das esquerdas apresenta uma enorme vantagem: na política espanhola vamos continuar a ter a possibilidade de usar argumentos, em vez de simples “slogans”. As camadas superiores do cérebro vão poder continuar a ser utilizadas, contra o matraquear visceral dos gritos de guerra dos fanáticos. O grande desafio de Pedro Sánchez e do PSOE vai ser o de reconstruir a governabilidade de uma Espanha dilacerada por várias linhas de clivagem. Ele terá a grande oportunidade de proporcionar à Espanha um contrato de reconciliação por oposição à actual rota de colisão entre as identidades beligerantes do espanholismo e dos independentismos. Tanto aquele que está em carne viva, na Catalunha, como aquele que se encontra latente no País Basco. Os últimos anos de fragmentação da Espanha comprovam bem aquilo que Amin Maalouf demonstrou sobre o risco da política ser dominada pelo discurso de identidades agressivas que, primeiro, ignoram o Outro, para depois o tentarem esmagar. A Espanha ainda tem na sua memória a verdade sangrenta de que, levadas ao extremo, as identidades são mesmo assassinas.
Espero que Sánchez se possa inspirar nas lições, sobre a Espanha, mas também sobre a Europa, do grande pensador Ortega y Gasset (1883-1955). Ortega mostrou a diferença essencial entre um “povo” e uma “nação”. O primeiro é “uma colectividade constituída” pela acumulação passiva “das vicissitudes da história”. A “nação”, pelo contrário, é activa, incorporando um elemento arquitectónico voluntário, uma ideia e um projecto de vida comum a realizar. Tal como para o nosso Antero de Quental, também para Ortega, a nação não é uma categoria biológica, mas sim uma ideia de futuro comum a realizar. É por isso que, com perfeita coerência lógica, na sinistra década de 1930, com a noite do nacionalismo suicidário do nazi-fascismo a cair sobre a Europa, Ortega ergueu a sua voz em defesa de uma “supernação europeia”. Por outras palavras, a nação contida no padrão acanhado do Estado-nação estava esgotada. Tinha cumprido a sua missão histórica. Insistir nela seria uma regressão, paga com a destruição europeia e o sangue de milhões. Os povos da Europa, insiste Ortega, só poderiam salvar-se “se transcendessem essa velha e esclerosada ideia [do Estado-nação] fazendo-se ao caminho de uma supernação, de uma integração europeia”.
Se a Espanha conseguir recuperar, através do respeito mútuo que implica perdão e diálogo, a inteligência de um projecto comum, isso significará reabrir a agenda do futuro no único lugar onde ele pode ocorrer: no horizonte de renovação da arquitectura do projecto da integração europeia. E com isso, ao retomar a iniciativa sobre a passividade, a Espanha lançará um desafio a todos os europeus de boa vontade.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado na edição do Diário de Notícias, de dia 4 de Maio de 2019, página 28.