A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, OS HOMENS E OS DEUSES

Os debates recentes sobre a Inteligência Artificial (doravante, IA) obrigam-nos a pensar sobre a questão maior da nossa (in) capacidade de controlar o ritmo de crescimento das tecnologias como um todo. Um raríssimo exemplo histórico da capacidade política de travar uma tecnologia considerada perigosa foi dado pela aristocracia militar japonesa no segundo quartel do século XVII – no início da era de fechamento e paz interna denominada por Período de Edo (1603-1868) – com a quase abolição das armas de fogo. Os arcabuzes foram introduzidos na sociedade nipónica em 1543, logo na chegada dos portugueses. Vivia-se o terrível Período Sengoku, uma interminável guerra civil que nos aparece com sangrento esplendor na filmografia de Kurosawa. Em poucos anos, com a sua diligência habitual, os armeiros japoneses aperfeiçoam as armas portuguesas ao ponto de em 1575 terem sido usados 3 000 arcabuzes na batalha de Nagashino. Haverá muitas razões para essa deliberada travagem tecnológica, incluindo o horror que os samurais devem ter sentido quando viram os seus camponeses conseguirem obter em 7 dias de treino uma capacidade letal que para eles implicava uma vida inteira de entrega às artes do sabre e do arco. Contudo, o que importa perguntar é se poderíamos hoje tomar, a uma escala global, uma decisão semelhante em relação ao curso da tecnologia em geral e da IA em particular?

A atual vanguarda tecnocientífica apresenta-se como um triângulo formado pela IA, biotecnologia e nanotecnologia. Cada um destes vértices, vistos separadamente, apresenta prodigiosas promessas e gigantescas ameaças. Contudo, o futuro aponta para a sua convergência, até à plena fusão, num processo dominado pela IA, por máquinas que mimetizam exponencialmente alguns dos atributos da inteligência humana, através de programas (software) que fazem as suas atualizações com autonomia. Mesmo antes dos vários manifestos que neste ano têm pedido moratórias e regulação no desenvolvimento da IA, quatro das personalidades mais notórias do entusiasmo tecnocientífico, em que desde a modernidade europeia embarcámos, convergiram num profundo ceticismo em relação aos perigos existenciais para a humanidade representados pelo crescimento exponencial da IA: o falecido físico Stephen Hawking, o empresário Elon Musk, o filósofo transumanista, Nick Bostrom, e o autor de best-selllers, Yuval Noah Harari.

Voltemos à pergunta inicial: será possível controlar hoje a IA do mesmo modo como o Xogunato de Tokugawa controlou as armas de fogo até ao ultimato comercial dos EUA em 1854? Controlar a IA significa que a desenvolveríamos apenas no quadro dos seus impactos benéficos, que já todos usufruímos nos nossos telemóveis, na encomenda de bens, na condução rodoviária, no apoio a múltiplos atos médicos, entre muito outros serviços. Repare-se que mesmo os “impactos benéficos” geram problemas para os quais ainda não existem soluções sociais e políticas, como é o caso do impacto da destruição maciça de emprego causada pela IA. Apesar da velocidade da tecnologia ser superior à nossa capacidade de a acompanhar conceptualmente, não é difícil perceber que a liderança no desenvolvimento tecnológico, neste caso na esfera da IA, pertence ao complexo militar-industrial global, liderado a grande distância pela poderosa rede empresarial que atua em simbiose com o Departamento da Defesa dos EUA (DoD). O mesmo sucede, em menor escala, com as instituições análogas das grandes potências do diretório mundial em recomposição. A IA é hoje indispensável não só na competição económica como e sobretudo na luta pela hegemonia militar. Os campos da batalha da Ucrânia exibem-no, por exemplo, no desfile de drones suicidas: os modelos norte-americanos Switchblade e Phoenix Ghost, os Lancet-3 russos e os Shahed-136 iranianos. A China parece estar à frente da concorrência no uso da IA, incluindo na segurança interna, através do “sistema de crédito de avaliação social”, que transforma toda a sociedade num imenso panótico digital de vigilância. Também aqui, no futuro da IA, a competição bélica entre Estados e empresas, contribui para uma corrida até ao abismo, prevalecendo o lema de Pompeu Magno, “navegar é preciso, viver não é necessário”. Apesar dos legítimos e razoáveis queixumes de vários quadrantes, a degradação da capacidade deliberativa das instituições políticas é patente. Nas nossas democracias de mercado a intensidade intelectual das políticas públicas tem tendência para diminuir. A decisão sobre fins foi substituída pela mera gestão instrumental. Espero estar enganado, mas sou obrigado a reconhecer a oracular acuidade de Martin Heidegger, quando confessou à revista Der Spiegel – em entrevista concedida em setembro de 1966, mas só publicada postumamente em maio de 1976 -, que perante os riscos contemporâneos da tecnologia: “Apenas um deus nos pode salvar”.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 24 de junho de 2023, p. 11.

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