O CÉU ESTRELADO DE VINCENT VAN GOGH

Há uma pintura a óleo de Van Gogh, datada de 1888, Noite estrelada, que é quase impossível os leitores não terem encontrado alguma vez no seu caminho. Quando a contemplamos, percebemos que o pintor não se limita a partilhar connosco uma imagem do céu estrelado, antes do oceano sideral ter ficado inacessível pela poluição visual da omnipresente eletricidade moderna. O que o artista nos oferece na tela é uma intuição plástica, mas também intelectual, da essência de uma noite estrelada: a verdade mágica de as nossas breves vidas neste planeta partilharem o mistério de uma existência infinita e ilimitada. Um mistério que a nossa consciência, quando capaz de lucidez, se contentará em aflorar, sem jamais ter a arrogância de o querer “resolver”. Esse quadro, que nos atinge pela sua inesperada intensidade, condensa o enorme e crescente impacto sobre o imaginário da humanidade contemporânea, das telas e desenhos desse jovem criador, tragicamente desaparecido aos 37 anos. Vincent Van Gogh (1853-1890), representa bem o que a determinação da vontade consegue realizar, quando aliada a uma laboriosa criatividade. Autodidata (assumiu-se como artista já com 27 anos), sem ligações relevantes ao meio artístico, nessa altura com capital global em Paris, sem qualquer sucesso comercial em vida, torturado pela luta entre o seu génio generoso e o demónio da doença mental, Van Gogh não foi apenas o autor de mais de duas mil obras, entre pinturas e desenhos. Um aspeto menos conhecido é a existência de uma profunda meditação teórica, de cariz filosófico, dispersa pelo seu vasto espólio epistolar, abrangendo cerca de 1 750 cartas a um grupo muito reduzido de interlocutores, onde se destaca o seu irmão mais novo, Theo (1857-1891).

A obra de van Gogh, protegida do esquecimento pela luta incansável da sua cunhada, Johanna (1862-1925), tem hoje no Museu Van Gogh de Amesterdão, o seu principal bastião. Recentemente, o museu publicou uma antologia de textos retirados da correspondência (The Healing Power of Nature), onde o artista reflete sobre as tarefas da pintura e a sua própria vocação. Nesse livro encontramos uma filosofia da Natureza inseparável de uma teoria da Arte. A leitura desses textos permite-nos compreender como a singularidade de Van Gogh também se enraíza numa prematura e firme recusa crítica do longo processo de afastamento da Natureza, simultaneamente, como lugar de pertença e de alteridade, que marcou a modernidade europeia. O narcisismo, o subjetivismo, a tecnologia como evasão e vontade de poder, saíram da Europa para colonizar o mundo. Transformaram-se numa espécie de Matrix universal, na qual é perigoso permanecer, mas ainda mais arriscado ousar sair. A preferência de Van Gogh por uma pintura de campo e de caminho – evocando um Turner (1775-1851), capaz de correr riscos para pintar uma tempestade -, não implicava adesão a um realismo simplista em detrimento da imaginação artística. Pintar pomares, charnecas, searas, noites estreladas, retratos, famílias camponesas no trabalho ou comendo batatas, paisagens marinhas, significava antes, para Van Gogh, a afirmação de uma hierarquia, incompreensível para os modernos aprendizes de Prometeu: na pintura como na vida, a Natureza transcende e tem um primado essencial sobre todas as formas da sua representação. Construímos a atual civilização sobre a premissa contrária. Não surpreende que o edifício esteja a ruir por todos os lados.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 17 de junho de 2023, p. 9.

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