UMA DIFÍCIL RELAÇÃO COM A VERDADE

Era Churchill quem, na sua habitual acutilância de espírito, dizia que os homens de vez em quando tropeçam na verdade, mas depressa de reerguem e seguem o seu caminho. A verdade não seria um encontro doloroso e transformador, mas um incómodo que rapidamente seria esquecido para continuarmos a nossa vida quotidiana. Efectivamente, Churchill segue apenas as pisadas de enormes vultos intelectuais do “cânone ocidental”. Através do conceito de “divertimento” (divertissement), o grande Pascal procurou caracterizar, justamente, a nossa penosa, diria mesmo insuportável, relação com a verdade. Nunca pensamos o suficiente no significado da nossa condição humana, nas implicações da nossa mortalidade, do nosso destino, ao mesmo tempo definitivo e incerto, atravessado na encruzilhada entre a totalidade divina e o vazio niilista com que preenchemos a grande incógnita da transcendência. Através do divertimento afasta-se esses dois irmãos gémeos, o “tédio” (l’ennui) e o “nada” (le néant) que nos espreitam bem de dentro da alma. Escondemo-nos na espuma dos dias. Abrigamo-nos na agitação nervosa das nossas tarefas, no palpitar das agendas, na produção de futuros ficcionais, procurando um sentido para a existência através da imitação do jogo, da competição, da adrenalina da vitória. Esse aturdimento pelo divertimento, talvez seja alimentado por esses ecos da luta pela sobrevivência desses caçadores-recolectores que, sob o verniz tecnológico, continuam a habitar dentro de nós.

Hoje vivemos numa sociedade de divertissement industrial, exponencial, total.Quem quiser, e tiver modestos meios que lhe assegurem a subsistência biológica, pode mergulhar 24 horas por dia, 7 dias por semana em múltiplos e quiméricos universos. Nas redes sociais, nas televisões por assinatura, nos canais da internet. Os universos virtuais substituem com vantagem a somado Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. São drogas que não deixam marcas químicas, mas providenciam o mesmo resultado: dissipar qualquer angústia causada pelo sentido ou pelo absurdo da existência. Sinal de um individualismo socialmente patológico, esta fuga para os universos virtuais pode mesmo conduzir indivíduos, sobretudo jovens do sexo masculino, a estados de reclusão em casa que se podem prolongar por muitos anos. Este fenómeno é hoje considerado um problema clínico, tendo recebido uma designação na língua japonesa, país onde atinge uma dimensão quase epidémica: Hilkkimori (“isolamento em casa”). Cerca de meio milhão de jovens nipónicos, prisioneiros voluntários nos seus quartos, migram para o interior dos seus computadores, assumindo identidades fictícias nas redes, vestindo a pele digital dos seus avatares. Para eles, o mundo analógico tridimensional transformou-se numa ameaça. Nada debaixo do sol lhes parece proporcionar alívio. Buscam preencher os seus medos e angústias num upgrade tecnológico do divertimento. Hoje podemos estar ligados uns aos outros, envolvermo-nos em diálogos e interacções com milhares de nós entrelaçados na mesma rede, não para nos conectarmos com o mundo, mas, pelo contrário, para nos afastarmos dele. Para negarmos até a existência dos problemas, procurando refúgio na reiteração de mantras tranquilizadores, que substituem a dilacerada e plural realidade pelo monótono eco dos nossos mitos, fazendo do “mundo” o espelho fosco e caricatural do rosto das nossas superstições.

No passado, o “divertimento” foi capaz de nos levar a ignorar e a conviver com todas as injustiças do mundo, da escravatura à submissão das mulheres e dos povos vencidos e colonizados, para falar apenas de parte de uma lista muito maior. Mas hoje, o aparato do divertimento é muito mais poderoso e sofisticado. A comummente referida crise da ética, ou a constatação da falta pública de um debate moral sobre escolhas políticas, económicas e tecnológicas, é um sinal claro de uma sociedade que nega e escamoteia a diferença e a alteridade. E isso não apenas no plano antropológico, mas também na dimensão ecológica e ontológica. Contudo, esse mundo das outras criaturas, que sofrem para nosso proveito, e a própria possibilidade de auto-aniquilação da Terra como morada propícia para a humanidade, mostram o seu rosto na Sexta Extinção em curso e na veloz crise climática em fase de intensificação.

Todavia, a própria esfera pública onde o debate e a deliberação colectivas poderiam ser articulados, parece ser cada vez mais uma memória desfocada de passado mitificado. A política rendeu-se às leis do marketing. O discurso argumentativo foi substituído pelo slogan. A réplica, que é a essência da disputa comunicacional, deu lugar ao aplauso e à injúria. As figuras públicas tendem a transformar-se em produtos, marcas que se compram e vendem, que fazem comprar e vender. Os partidos escolhem líderes na base de critérios de fotogenia e sucesso eleitoral, e não de competência epistémica para as complexidades dos lugares públicos. Trump seria excessivo até para o Partido Republicano, não fosse o facto de ele ser um “animal televisivo” um factor decisivo para o tornar num potencial cavalo-de-corrida vencedor. Há anos atrás, Yanek Mieczkowski, um especialista em história presidencial dos EUA, recordava que os grandes presidentes da era da fundação dos EUA não teriam qualquer chance de serem eleitos nas campanhas intensamente imagéticas de hoje: George Washington usava dentadura; John Adams era completamente desdentado; Jefferson detestava multidões e tinha uma voz tão fraca que quase ninguém conseguia ouvir os seus discursos. Eu acrescento a esta lista, Franklin Delano Roosevelt. O maior presidente de sempre dos EUA, preso a uma cadeira de rodas desde 1921, não teria hoje qualquer hipótese, sequer de ganhar a nomeação do seu partido. Quem se pode admirar por uma cultura política que trocou a verdade pela aparência se ter tornado numa fonte de problemas em vez de soluções?

A verdade é dolorosa, contudo só ela nos pode libertar para a grandeza, a responsabilidade e a beleza da vida. Quem tem medo da verdade perde-se no caminho. Sejam indivíduos ou povos inteiros. No final da estrada, a ilusão termina sempre no regaço gélido de Tanatos, o grande simplificador da paz dos cemitérios.Se hoje o mundo está atordoado pela crise climática isso não quer dizer que tenhamos acordado, finalmente, para a verdade, Significa, apenas, que a situação objectiva é de tal modo grave que nem a nossa híper-indústria do divertimento pode impedir essas realidades inconvenientes de nos entrarem pela porta de casa dentro.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras na edição de dia 18 de Dezembro de 2019, página 27.

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