Mesmo antes das destruições recentes, é do conhecimento geral que essa jóia maior da cultura europeia, Veneza, será uma das primeiras vítimas da subida imparável do Nível Médio do Mar (NMM), mercê das alterações climáticas. Para evitar as habituais manobras de diversão, que atiram tudo para cima de uma certa desorganização e escassa transparência do sistema político italiano (para não usar o termo corrupção em terra alheia), vale a pena citar um estudo de Junho deste ano publicado pela Academia das Ciências dos EUA (J. L. Bamber et alia), em que se actualizam as projecções de subida do NMM para 2 metros até 2100 e 7,5 metros até 2200, no cenário provável de um aumento da temperatura média na zona dos 5º C. Indo ao cerne da questão: se dermos crédito a décadas de trabalho científico competente e porfiado teremos de ter a coragem de reconhecer que nem mesmo a capacidade de organização e coordenação dos holandeses chegará para que os Países Baixos fiquem imunes a uma subida do NMM de 3 ou 4 metros daqui por 120-150 anos. Para a subida do NMM no longo prazo, que se estima já estar comprometida no actual nível de concentração de gases de estufa, as medidas de mitigação, embora fundamentais para manter a habitabilidade do planeta, já não chegarão a tempo para muitos milhares de cidades e infra-estruturas, com dezenas de milhões de pessoas afectadas, As muito onerosas medidas de adaptação também serão inúteis a partir de um determinado nível de subida do NMM.
O que é verdadeiramente bizarro é o estranho sonambulismo dos governos nacionais e da União Europeia perante esta situação. Sem o analfabetismo científico, muitas vezes voluntário e quase sempre ligado a interesses mesquinhos, de quem nos governa política e economicamente, poderíamos ter iniciado em 1980 um caminho de transição energética que teria reduzido impacto das alterações climáticas a níveis mínimos. Mesmo hoje, apesar das retóricas declarações nacionais de emergência climática, não são visíveis decisões e políticas à altura do problema. A arrogância de José Luís Arnaut – um nómada entre política e negócios que preside à empresa estrangeira que controla os aeroportos portugueses – criando um humilhante ranking entre ministros do governo português, em função da rapidez em mobilizar caterpillars, constitui uma grotesca caricatura do estado das coisas. Mostra quem manda e quem obedece. Quando deveríamos estar a aliviar as zonas costeiras, Lisboa resolve ceder à ANA, criando uma mega-estrutura aeroportuária, num lugar errado para o ambiente e a segurança, que vai ser um fardo para as próximas gerações. Na UE, a situação não é melhor. O medíocre Tratado Orçamental e o mesquinho orçamento europeu mantêm-se blindados em fantasia e preconceito, apesar de estar em causa a nossa sobrevivência como sociedade civilizada. Os governos, facilitadores amáveis das grandes corporações, não nos protegem, preferindo abrir frestas nos diques que ainda nos separam do caos e da ingovernabilidade. Cada vez mais a cidadania será um acto de legítima defesa.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, 23 de Novembro de 2019, p. 29.