SEBASTIÃO DA GAMA E O ELO PERDIDO

Visitei recentemente a Casa-Memória Joana Luísa e Sebastião da Gama, em Vila Nogueira de Azeitão. É uma estrutura museológica inaugurada em 2021, na casa oferecida à Associação Cultural Sebastião da Gama pela viúva do Poeta, Joana Luísa, falecida em 2014. A junção dos dois nomes é inteiramente justa. Joana Luísa foi não só a mulher amada que iluminou a curta vida de 27 anos do Poeta, como a principal guardiã da sua obra, estimulando a publicação dos seus textos inéditos e os estudos académicos sobre a sua obra. O edifício tem dois pisos, e uma comovente simplicidade que condiz inteiramente com a personalidade dos homenageados. No piso inferior, existe uma cronologia biográfica ilustrada do poeta, e material iconográfico alusivo à sua vida, complementados por breves, mas elucidativos, documentários. No segundo piso encontra-se o Centro de Documentação, incluindo diferentes edições das obras do autor de Serra-Mãe. Uma visita aconselha-se em geral e em qualquer altura. A divulgação e o convívio com a obra do Autor exigem-se, tanto mais que nos encontramos a escassos meses da celebração do centenário do seu nascimento, em 10 de abril de 2024.

A Serra da Arrábida, que defendeu como cidadão, incentivando a criação da Liga para a Proteção da Natureza, está no centro da sua mundovisão. Penso ser possível encontrar na escrita do Poeta um triângulo temático que junta o tema de Deus aos da Natureza e da Morte, que Sebastião sempre sentiu a seu lado desde o prematuro diagnóstico de tuberculose. Na sua Arrábida ecoam as vozes de santos e místicos como São João da Cruz, Santa Teresa do Menino Jesus, ou Frei Agostinho da Cruz (aliás, Agostinho Pimenta. 1540-1619). Contudo, não me parece adequado circunscrever o Poeta numa ilha cultural excessivamente nacional, quando o tema de Deus e das suas metamorfoses é transversalmente europeu e a avidez intelectual do jovem Sebastião não parece respeitar ou embaraçar-se excessivamente com fronteiras. Penso ser legítimo sustentar que uma grande parte da perenidade da poesia de Sebastião reside na sua compreensão daquilo que para a nossa civilização contemporânea consiste num elo que, provavelmente, está irremediavelmente perdido: a aceitação corajosa da nossa mortalidade individual e o respeito estético e ético pela Natureza, sendo esta a face de um mistério que não se esgota em nenhuma religião ou metafísica dogmáticas. Sublinho, contudo, que a coragem de aceitar a morte, como um gesto supremo de triunfo da vontade de viver, nunca se confunde com uma qualquer patologia mística de a desejar.

Este breve esboço de uma hipótese de leitura do significado filosófico da poesia de Sebastião da Gama no quadro dos temas e controvérsias do “espírito do mundo” europeu da sua época, que em muitas facetas ainda é a nossa, necessitaria para a sua robusta demonstração de uma investigação que em muito ultrapassa o âmbito desta modesta meditação. Aqui fica o convite e o desafio para quem a queira empreender. A única imortalidade que nos é acessível, na fragilidade da condição humana, é aquela que é alimentada pelo diálogo intelectual com a palavra dos que já não caminham debaixo do sol. As palavras poéticas de Sebastião da Gama têm tesouros suficientes para um diálogo de duração indeterminada ao longo das gerações. E isso é um privilégio partilhado apenas pelos grandes criadores. Aqueles a quem designamos como clássicos. É com e entre eles que Sebastião da Gama continuará a viver.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias em 16 de setembro de 2023, página 9.

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