Depois das vítimas e suas famílias, ninguém deve ter sofrido mais com as revelações dos abusos sexuais cometidos por membros do clero português nos últimos 70 anos do que os católicos militantes, aqueles que publicamente estão comprometidos com a ideia de uma comunidade de crentes que se orienta na vida pelo exemplo de Cristo, aqui e agora, neste mundo de natalidade e mortalidade, de carne e osso. Mesmo para os chamados “não-praticantes”, para quem a ligação ao catolicismo se baseia num batismo realizado na infância, sem decisão livre, e numa ligação moderadamente ritual (casamentos e funerais), saber que sacerdotes praticaram violência sexual contra menores que deles esperavam educação, exemplo e cuidado, sendo depois protegidos da justiça pública pela hierarquia eclesiástica, durante décadas sucessivas, continuando a repetir os seus crimes noutras paróquias, é algo que não pode ser encarado de ânimo leve, e que não será facilmente esquecido, mesmo nesta época de amnésia programada.
No plano cultural, o que ocorre na Igreja Católica pelo mundo fora, evoca dramaticamente os debates do século XIX sobre a “morte de Deus” e a entrada na era do niilismo. Um tempo que, então, era futuro, e hoje é o nosso presente. Um tempo sem transcendência, onde a idolatria do bezerro de ouro se transformou no verdadeiro credo universal. Nietzsche, cujo pensamento sobre este tema é muitas vezes reduzido à banalidade simplista do ateísmo, compreendeu perfeitamente os riscos que o crepúsculo do cristianismo representaria para a salubridade cultural de uma sociedade capaz de viver para além do consumismo boçal, se deixado sem uma alternativa espiritual forte. No Outono de 1881, escreveu este breve apontamento “Se nós não fizermos da morte de Deus uma grandiosa renúncia e uma perpétua vitória sobre nós próprios, então teremos de suportar a sua perda.” (Werke, vol. 9, 12 [9], 577).
Mas, mais ainda do que Nietzsche, estas sombrias revelações sobre o comportamento abusivo de padres sobre crianças, que por isso ficaram marcadas e condenadas a um silêncio traumático pela vida fora, evoca o genial monólogo do Grande Inquisidor, escrito por Dostoievski no seu livro Os Irmãos Karamazov. Nessa ficção, passada na Sevilha do século XVI, Cristo, regressado à Terra, é mandado prender pelo Grande Inquisidor, que lhe comunica a intenção de o condenar à morte, pois a sua doutrina de libertação perturbava a domesticada boa ordem do rebanho…O monólogo é de grande complexidade filosófica e teológica. No final, Cristo, que não pronunciou uma só palavra, beija o Grande Inquisidor, e este parece vacilar na sua intenção declarada de o entregar à fogueira.
Não sei se as vítimas, ainda em silêncio, perdoarão alguma vez aos seus abusadores, como o Cristo de Dostoievski perdoou a uma Igreja que, em seu nome, o perseguiria no seu regresso. O que sei é que este caminho de trocar a mentira pela verdade em que a Igreja embarcou, não tem possibilidade de regresso. Não existe alternativa entre a dolorosa e longa via do merecimento da redenção, ou o risco de rápida erosão e desmoronamento.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Público, edição de 16 de fevereiro de 2023.