Com a brutalidade da guerra em crescendo, aumenta a constatação de vivermos num sistema internacional espectral. As Nações Unidas, construídas no culminar da experiência dolorosa da II Guerra Mundial, têm manifestamente vindo a perder força e crédito, muito embora a sua permanência, mesmo frágil, seja infinitamente preferível ao vazio de uma anarquia nua, sem uma ágora onde, pelo menos, o direito à lamentação pública seja contemplado. Dito de outro modo, as relações internacionais efectivas – tendo como protagonistas os Estados e outros actores globais não-estaduais – não têm hoje um sistema eficaz de regulação que lhes preste o serviço fundamental de gerar equilíbrio, gerir conflitos, preservar e fomentar a paz sob todas as suas formas.
Construir o edifício de um sistema internacional não é coisa nem fácil nem banal. Nos últimos quatro séculos apenas foram construídos três. O sistema de Vestfália (1648); o sistema de Viena (1815); e o actual sistema das Nações Unidas (1945). Em todos os casos, o padrão é semelhante: as regras de uma nova ordem só ocorrem depois de um longo e sangrento lavrar do caos: a Guerra dos Trinta Anos, para nascer Vestfália; quase duas décadas de campanhas napoleónicas, até que Metternich pudesse desenhar uma nova geografia política da Europa e arredores; a Segunda Guerra dos Trinta Anos- designação popularizada por Winston Churchill para designar uma leitura conjunta das violentas décadas entre 1914 e 1945 – até às Nações Unidas e a sua Carta. As analogias, por mais que fascinem a nossa natural sede de compreensão, não nos podem levar a esquecer as diferenças. Quem considere ser de esperar que esta guerra tenha de seguir o seu curso de destruição até que uma nova ordem se possa reerguer, está a esquecer que uma guerra central entre potências nucleares apenas trará consigo a paz eterna dos cemitérios.
Por isso tenho defendido a prioridade de travar diplomaticamente a guerra. Pois é aí que está o rastilho aceso que pode incendiar o mundo e deitar tudo a perder. Sem a morte à solta, haverá mais condições para discutir tudo. Apesar das suas limitações, o actual sistema das Nações Unidas parece-me ainda possuir virtualidades para acomodar a realidade do mutante mundo de hoje, que se define por dois desafios: aceitar o facto da multipolaridade; perceber que a ameaça existencial da crise ambiental e climática exige uma cooperação compulsória das grandes e das pequenas potências, sob pena de sucumbirmos juntos sob o peso do fracasso. O miraculoso e pacífico final da Guerra Fria, ofereceu o momento ideal para operar as reformas do sistema internacional. No fundo, tratar-se-ia de retomar o espírito de F.D. Roosevelt, que, quando os EUA eram a superpotência sem rival, representando 50% da economia mundial e tendo o monopólio das armas atómicas, preferiu partilhar institucionalmente o poder – através do sistema das Nações Unidas – em vez de o exercer unilateralmente. Infelizmente, não foi esse o caminho que o mundo seguiu. A agressão russa da Ucrânia, eticamente repugnante e politicamente condenável, não pode ser separada do saldo negativo resultante da desastrada quimera unipolar perseguida pelos EUA nos últimos 25 anos. Pensar que aquilo que consideramos ser o nosso interesse pode ser a medida da ordem mundial não é só egoísmo. É um erro grosseiro. Na Terra, que tornámos tão frágil, só a aliança entre poder e generosidade estratégica é realista. Dela depende a possibilidade de um futuro habitável.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 9 de Abril de 2022, p. 9.
Caro V.S. Marques
Concordo consigo, excepto quando uma falta de objectividade histórica desloca a sua análise no sentido de condenar o suposto iniciador do conflito.
Considerar a “agressão russa … eticamente repugnante e politicamente condenável” nada diz sobre as causas da agressão. A sua resposta está à frente, mas vestida com capa de açucar: apenas um “saldo negativo de uma quimera unipolar”. Não meu caro VSM: é o preço em morte, em degradação económica, em fome, em agressão ambiental e, sabe-se-lá em que impensável grau de destruição, da estratégia do Departamento de Estado e do Think Tank da Rand Corporation dos EUA, e dos seus peões da NATO, da UE; com a ajuda da censura dos media que vai mantendo as mentes infantilizadas com a história do “urso louco”.