UM DUPLO E PARADOXAL BICENTENÁRIO

A realidade brutal do presente não nos tem criado a necessária tranquilidade de espírito para meditarmos no duplo bicentenário que este ano se comemora. A 7 de Setembro de 1822, Portugal e Brasil (que passara a ser reino em 1815), separavam-se, no famoso Grito do Ipiranga, lançado pelo futuro Imperador D. Pedro I do Brasil, e efémero D. Pedro IV de Portugal. No dia 23 de Setembro do mesmo ano, Portugal (sem ainda saber do divórcio brasileiro) aprovava a sua primeira Constituição, nascida da Revolução liberal do Porto de 1820, e das Cortes Constituintes que se lhe seguiram. Ao abraçar os ideais do regime representativo, Portugal via, simultaneamente, apartar-se, aquele gigantesco império americano que, nas palavras de Almeida Garrett, tinha sido a fonte do que nos restava de grandeza.

Os brasileiros estavam fortemente representados nas Cortes Constituintes de Lisboa. Contudo, as suas propostas para transformar o Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves, numa monarquia federal com duas centralidades cooperantes, na Europa e na América, foram desprezadas pela maioria dos deputados constituintes. A verdade é que a usura dos interesses da burguesia comercial metropolitana, tenaz na tentativa de restaurar os seus privilégios comerciais feridos, foi mais forte do que a fria razão política. Num gesto intransigente e ressentido, a maioria dos deputados inverteu toda a política de D. João VI, que havia transformado o Brasil no centro da política e da diplomacia nacional. A Constituição de 1822 limitava-se, para além de receber em Lisboa os deputados brasileiros, a admitir no Brasil “uma delegação do poder executivo, encarregada a uma regência, que residirá no logar mais conveniente que a lei designar. D’ella poderão ficar independentes algumas províncias e sujeitas immediatamente ao governo de Portugal.” (Art.º128º).

O Brasil separou-se de Portugal, neste contexto insólito onde as esperanças de liberdade dos dois povos acabaram por chocar, em vez de convergir. Foi este aparente paradoxo que serviu de objecto à tese de doutoramento de Carlos Fino – um jornalista que marcou gerações de espectadores do serviço público de televisão. A tese, com a dupla tutela das Universidades do Minho e de Brasília, foi publicada em Outubro com o título: Portugal-Brasil. Raízes do Estranhamento (Lisbon International Press, 2021, 504 pp.).Carlos Fino mergulhou num imenso material de estudo, onde pontificam os grandes nomes da historiografia da “identidade brasileira”, como é o caso de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, António Cândido, Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro…Mas também, os numerosos intelectuais portugueses, como Eduardo Lourenço, que viveram e pensaram o Brasil. Analisou, igualmente, a historiografia dos dois países, incluindo as relações diplomáticas e culturais. O resultado são sete luminosos capítulos, onde a narrativa histórica se abre à fina interpretação crítica, mostrando como na raiz desse estranhamento se misturam lusofobia e lusofilia, inseguranças e esquecimentos, equívocos e erros mútuos cometidos em ambas os países. Além de ser uma leitura instrutiva e elegante, este livro de Carlos Fino, termina com propostas que só o amor pelas duas pátrias explica. O autor traça um roteiro de políticas públicas na esfera cultural e comunicacional que, não pretendendo o milagre de acabar com o estranhamento, pelo menos ajudará a que ele não encontre amparo no desmazelo da (in) acção dos governos.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, na edição de16 de Abril de 2022, página 10.

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