Hannah Arendt recordou-nos que para os Gregos da Antiguidade a única forma de romper com a lei da morte, seria a possibilidade de entregar o nome à recordação das gerações futuras. Essa ruptura com o esquecimento era a imortalidade dos heróis, cantados pelos poetas e protegidos pela veneração e pela lenda. Foi por isso que Aquiles partiu para a guerra de Tróia sabendo que iria morrer novo, mas sobreviria pelos milénios, enquanto existir civilização humana. A imortalidade grega não se confunde com a eternidade cristã, porque a primeira permanece intrinsecamente ligada ao mundo, ao mundo social e histórico, enquanto a segunda transcende a mundanidade e a temporalidade.
Sabemos bem como hoje nem a imortalidade nem a eternidade conseguem resistir à trituradora e organizada opressão do esquecimento. Mesmo os “heróis”, se ainda existem, ou são ignorados, ou são desprezados em vida. Contudo, existem mesmo aqueles que nem esquecidos são, porque os seus feitos e a sua grandeza nunca chegou a ser registada. No seu esboço sobre o conceito de história, Walter Benjamin manifesta, em harmonia com o seu marxismo mesclado pela forte marca da cultura judaica, a dor causada por todas as injustiças sofridas pelas vítimas das gerações passadas. Sem consolo, nem redenção.
Parece-me ser neste dupla inspiração, de Arendt e Benjamin, que poderemos ler o sentido profundo desta recente publicação do SOS Racismo, dedicada a resgatar das trevas do olvido de milhares de heróis e heroínas que dedicaram a sua vida a lutar, em todos os continentes, pelas mais diversas causas. Sempre ligadas à tarefa de tornar o mundo mais habitável e a vida humana mais digna. Esta tarefa hercúlea de organizar um dicionário com cerca de 3 000 entradas – onde os nomes mais universais também estão presentes, mas em minoria – contou com os contributos de 160 voluntários de todos os azimutes do Planeta. Cada continente tem duas linhas temáticas centrais, que estruturam o alinhamento das breves biografias: Lutas Sociais e Cultura e Ciências. Por sua vez, cada uma delas se subdivide por subtemas: Feminismo, Independências, Políticas, Racismo (para as Lutas Sociais). Ciência e Tecnologia, Cinema e Teatro, Desporto, Filosofia, Teoria Política, Ciências Sociais, Literatura, Música (para a Cultura e Ciências). O livro conta com três breves textos introdutórios de José Falcão, Mamadou Ba e Ana Alcântara.
Trata-se, este livro, de um contributo positivo para uma história da humanidade, entendida não como realidade dada e acabada, mas como projecto em marcha. Como uma hipótese ou um ideal que só será realizado sob o signo da pluralidade. Jamais sob o anátema da hegemonia de uma perspectiva, que se considere a si mesma, como a única detentora da verdade e do direito a prevalecer no tempo.
Ana Sofia Palma, José Falcão, Mamadou Ba, Txema Abaigar (coordenadores, Dicionário da Invisibilidade, Lisboa SOS Racismo, 2021, 611 pp. € 20,00.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras de 20 de Abril de 2022, p. 26.