No prefácio à edição de uma antologia de escritos políticos de Ramalho Ortigão, vinda a público neste mês, Viriato Soromenho-Marques escreve sobre os três elementos do que designa como “teoria política” de Ramalho. Ao contrário de Antero de Quental, de Oliveira Martins, ou de Eça de Queiroz, precocemente desaparecidos, o olhar de Ramalho abrange meio-século da vida política portuguesa, do final da monarquia constitucional ao dealbar da I República. Cabe ao leitor ajuizar sobre os aspectos desta imagem da política nacional que ainda permanecem nos nossos dias.
Título: As Farpas de Ramalho Ortigão. Antologia: Escritos sobre política
Autor: Ramalho Ortigão
Editor: Francisco Abreu
Prefaciador: Viriato Soromenho-Marques
Número de páginas: 350
Preço de Venda ao Público: 17,95€
Data de Publicação: Novembro de 2020
ISBN: 978-972-559-419-3
Ramalho Ortigão (1836-1915) é um dos mais talentosos e plurifacetados representantes das duas ou três dezenas de nomes que constituem o escol cultural e a consciência crítica de Portugal nas últimas quatro décadas do século XIX, entrando já no século XX e nos primeiros anos da República. Esta edição reúne textos que alcançam, embora com hiatos significativos, cerca de quatro décadas de análise da política nacional. Na riqueza de ângulos de observação e na elegância da escrita, que oscila entre a ironia frontal e a reflexão ensaística, o leitor fica com uma aproximação à diversidade de temas e de interesses que se espelham na obra de Ramalho, distinguida por uma atenção exigente, sem deixar de ser apaixonada, por todas as manifestações – da arte, da cultura, da ciência, dos costumes, das paisagens – de um mundo em aceleração crescente.
Dotado de um espírito livre e independente, Ramalho era também um activo membro da lusa “república das letras” desse final da monarquia. Antigo professor de Eça de Queiroz (1844-1900), foi com ele que se lançou na aventura d’As Farpas, continuando-a após o início da carreira diplomática do futuro autor d’A Cidade e as Serras (veja-se, nesta edição, o Preâmbulo do editor). Bateu-se em duelo de espadas, no que é hoje o jardim portuense da Arca D’Água, com Antero de Quental (1842-1891), no excessivo desfecho da famosa Questão Coimbrã, em Fevereiro de 1866. O ferimento que lhe causou a espada de Antero não impediu a profunda amizade que entre eles se manteve até ao suicídio do grande pensador micaelense. Com Teófilo Braga – companheiro de Antero na Geração de 70 e na organização das Conferências do Casino –, Ramalho Ortigão promoverá as grandes homenagens a Camões por ocasião do terceiro centenário da sua morte (1880). Depois da revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, Ramalho não deixará, contudo, que os laços dessa antiga amizade por Teófilo o impeçam de criticar severamente o Governo Provisório por ele presidido.
Aquilo que distingue esta edição, de outras anteriores, é o critério que orientou a selecção dos textos, que aqui formam uma espécie de arquipélago, erguendo-se a partir do vasto oceano do conjunto completo d’As Farpas. O leitor é convidado a viajar directamente ao núcleo do pensamento político de Ramalho aplicado na análise do estado da arte do país, não apenas no plano conjuntural, mas numa acepção que, não sendo essencialista, é sem dúvida estrutural e de longo fôlego. É a teoria política subjacente à mordacidade crítica de Ramalho que, assente na óptica histórica dos ciclos longos, desvela as características constantes da fenomenologia política portuguesa e suscita no leitor do século XXI o estranho sentimento de a expectativa de diacronia, perante textos do século XIX e inícios do século XX, ser substituída pela perturbante experiência de uma sincrónica proximidade. Há passagens do autor que atravessam décadas, como se fossem flechas proféticas, quando se trata, e não é pouca coisa, da sábia viagem no tempo que só as grandes mentes, capazes de contemplar os conceitos como se fossem objectos distintos, conseguem realizar.
Quais são os principais elementos integrantes da visão da esfera política de Ramalho Ortigão que se oferecem ao leitor em cada uma destas páginas? Em primeiro lugar, Ramalho pratica uma doutrina peculiar do progresso, essa grande narrativa ostensivamente omnipresente nas culturas europeias desde os alvores do século XVIII. Ao contrário da visão ingénua da política, típica do período das Luzes, que a interpreta como o braço armado da razão emancipadora, Ramalho integra na sua meditação, de modo evidente ou latente, toda a vasta reflexão produzida nas principais línguas de cultura do Ocidente, incorporando-a numa rede complexa de interacções, na qual a política acaba por ter um papel não só secundário, mas potencialmente funesto, pois os governos tendem a ser um factor de travagem do progresso, para o qual a melhor contribuição possível seria a de se absterem de combater a ciência e a arte, as suas duas forças motrizes principais1.
Em segundo lugar, o olhar de Ramalho sobre Portugal seria incompreensível sem ligação a essa sua teoria política complexa. Tal como Antero de Quental, ou Oliveira Martins, Ramalho contempla o país através das lentes de um patriotismo lúcido, por vezes amargo, diametralmente oposto àquele nacionalismo barbaramente ruidoso e medíocre que, na mesma altura, levava Nietzsche a exaltar Voltaire e a cultura francesa, num gesto de contraste crítico com o pangermanismo de capacete e baioneta, que haveria de levar a Europa ao duplo suicídio no século seguinte.
No parlamentarismo da Carta constitucional de 1826, que sofreria quatro revisões até 1910, encontrava Ramalho a imagem de um sistema político incapaz de satisfazer as necessidades materiais, educativas, culturais e científicas do país. Um sistema político que alimentava o narcisismo pobre daqueles que fazem da representação do bem comum, não uma vocação de serviço, mas uma profissão que procuram prolongar indefinidamente. A amargura contra o “votismo” e o manobrismo partidário vai-se adensando, até se tornar duríssima no diagnóstico implacável que o parlamentarismo vai receber já depois do 5 de Outubro de 19102.
O amor a Portugal, contudo, jamais abdica do dever de fidelidade à lucidez. Isso é flagrante na análise do Ultimato do Império britânico de Janeiro de 1890. Mais uma vez, Ramalho e Antero partilham a mesma atitude. Ambos encararam, com graus distintos de esperança, a possibilidade de o Ultimato servir como acicate para que o país, e os seus dirigentes políticos, se voltassem para dentro das suas potencialidades e limitações, aproveitando a vontade reformista do jovem rei D. Carlos, para “uma remodelação completa da política”, o que só seria possível através da criação de “um novo partido nacional, independente de todos os compromissos e de todas as solidariedades vigentes” (Na presente edição: Outubro de 1890, p. 286). Tratava-se de fazer da humilhação uma oportunidade de renascimento, fortalecendo os laços de brio no trabalho e de ética pública, que formam a base da identidade cultural e anímica de um povo que aceita persistir em conjunto na marcha da História. Ramalho opõe-se a qualquer visão étnica e biológica do que, por vezes, designa como a nossa “raça”, entendida como metáfora de uma identidade essencialmente cultural e psicológica3.
A terceira característica do que designo como teoria política de Ramalho é aquela que mais perturbadoramente nos interpela. Qual o melhor regime político para Portugal? Muito embora o seu diagnóstico do sistema de poder nascido do 5 de Outubro de 1910 o tenha levado a afirmar-se “muito moderadamente e muito condicionalmente monárquico”, a verdade é que Ramalho se tinha mostrado distante do que considerava ser uma falsa dicotomia entre monarquia e república4. Para ele, o importante é o sistema representativo de base constitucional, que tanto pode ser republicano, como monárquico. O decisivo é a qualificação cultural do povo, a correcta distribuição da riqueza, para permitir o florescimento da iniciativa individual e colectiva, em todos os domínios, da economia à arte e às ciências5. Por isso mesmo, Ramalho vai criticar ao parlamento da monarquia o inaceitável argumento de que o povo português não teria capacidade de sustentar uma república, pois isso seria a desqualificação da existência de qualquer regime constitucional; o mesmo seria dizer que o que estaria em causa não seria apenas o “direito à república”, mas também o “direito à liberdade”6.
Os monárquicos conservadores e os republicanos militantes confundiam o acessório, o modo de escolha do chefe de Estado, com o essencial, que é a legitimidade constitucional de um verdadeiro regime representativo, capaz de promover o progresso espiritual e material dos cidadãos, protegendo as liberdades, ancorando-as na firmeza da ordem e da paz públicas, condições indispensáveis para o efectivo exercício em segurança dessas liberdades7. A revolução republicana de 5 de Outubro de 1910 levaria ao limite extremo o desprezo pelo primado do sistema constitucional representativo, assim como a relação harmoniosa entre ordem e liberdades. Ao derrubar pela força das armas um regime debilitado, mas plenamente constitucional, os revolucionários republicanos expunham o país à “imprudência” que Ramalho já havia denunciado na década de 18708. O 5 de Outubro representou para Ramalho a pior corrupção da política, a perversa inversão de valores que consiste no sacrifício dos interesses gerais para satisfazer a vaidade e ambição daqueles que, pelo contrário, os deveriam servir9. Não admira que, certeiramente, Ramalho vaticinasse a vida turbulenta e o final abrupto de uma República, que ao sacrificar a ordem acabaria por inviabilizar a paz e as liberdades10.
Esta antologia termina com a exaltação por Ramalho das qualidades do povo português, sempre superior às ameaças conjunturais que o ameaçavam. Em 2020, não faltam ameaças e perigos já actuantes, que lançam a sua sombra sobre Portugal, a Europa e o mundo.
O convite deixado por Ramalho Ortigão na sua análise do 5 de Outubro parece-me irrecusável. Se queremos prosseguir o nosso futuro democrático – de uma paz civil que responde ao abraço da justiça, como exigia o Padre António Viera –, teremos de ter os pés bem assentes no chão da verdade histórica. É tempo de abandonar a mitologia ideológica de uma I República heróica, aceitando o diagnóstico mais realista que a designa como um estado de “guerra civil de baixa intensidade”, trazendo no seu seio a longa e triste expiação do Estado Novo11.
1 “A evolução progressiva da Humanidade realiza-se, a despeito deles, pela elaboração irresistível das ideias fora da esfera oficial, sob a acção das descobertas da ciência ou das sugestões da arte.” (Na presente edição: Fevereiro de 1877, p. 104).
2 Ver, nesta edição, Janeiro de 1911, p. 316.
3 Idem, s/d, pp. 341-345.
4 Idem, Janeiro de 1911, pp. 315-316.
5 “Pela nossa parte não somos monárquicos nem somos republicanos. A forma constitutiva do poder não nos importa. O problema político interessa-nos pouco. E neste ponto achamo-nos inteiramente com o nosso tempo e com a sociedade actual. A questão grave que hoje preocupa os povos não é de como se há-de distribuir o poder, é de como se há-de distribuir a riqueza.” (idem, s/d, p. 41). Em Julho de 1911 (idem, p. 325), Ramalho voltará a insistir em que não existe qualquer diferença significativa entre a forma monárquica e a forma republicana de um governo representativo.
6 Idem, s/d, pp.45-47.
7 “Porque a liberdade, por mais bela que ela seja, é na existência uma circunstância; a ordem é a condição essencial – intrínseca – da vida, a garantia do trabalho e a segurança do pão.” (idem, s/d, p. 53).
8 “Ter a monarquia com todos os foros democráticos e derribá-la por um escrúpulo de nome é grande imprudência.” (idem, s/d, p. 43).
9 “Assim desprovido de toda a indicação científica, o problema para os republicanos no dia 5 de Outubro não era, por conseguinte, nem social, nem económico, nem político. Era pura e exclusivamente pessoal.” (idem, Julho de 1911, p. 326).
10 “Não me parece, portanto – repito –, que o Governo Provisório de Lisboa seja mais autenticamente o prefácio de uma liberal república que o da mais despótica tirania.” (idem, Janeiro de 1911, p. 315).
11 Soromenho-Marques, Viriato, “A mais Longa República”, Diário de Notícias, 27 de Abril de 2019, p. 35.
“A sociedade tal como estava constituída, com as suas forças em constante movimento, a complexa rede subjacente de interesses esticada até ao limite, a luta incessante para tirar proveito, a opressão contínua, os conflitos e conluios entre facções, a gíria ardilosa da moralidade, o despotismo benigno da convenção, a instável ilusão da estabilidade (…)”.
Philip Roth “A Mancha Humana.”