QUATRO TESES: UMA EUROPA SITIADA A PARTIR DE DENTRO

Em Abril publiquei um breve ensaio (Depois da Queda, Temas e Debates/Círculo de Leitores) em que partilho com os leitores a minha visão do que está em causa no estado actual da crise europeia. Hoje regresso ao que me parece ser o essencial do meu diagnóstico, tendo por horizonte as importantes eleições europeias do próximo dia 26.

1. Uma ameaça que vem de dentro. O inimigo principal do projecto europeu não é a truculência de Trump, nem o calculismo de Putin, mas sim os seus velhos e íntimos fantasmas tribais, que regressaram em força com as respostas erradas à crise financeira de 2008-9. Diria até mais, o principal inimigo da sobrevivência do projecto europeu não são os populistas e extremistas, que se preparam para conquistar mais lugares no Parlamento Europeu, mas sim os governos alicerçados em partidos tradicionais liberais (da democracia cristã, conservadores e do socialismo democrático) que se recusam a fazer a profunda e indispensável reforma da união monetária, a única que permitiria à União Europeia não continuar a viver muito abaixo das suas promessas. Aqueles que recusam aumentar o orçamento europeu e introduzir a política de protecção social no portefólio das competências europeias, estão a usar uma retórica nacionalista (na prática tão danosa como a de Marine le Pen ou Salvini), que acaba por servir, na verdade, apenas ao processo de concentração da riqueza numa elite possidente, que manipula os governos e faz da fuga organizada ao fisco (equivalente ao PIB espanhol) uma indústria que rende em cada ano mais do que o conjunto do Quadro Financeiro Plurianual da UE 2014-2020 (cerca de 900 mil milhões de euros).

2. O primado do factor económico. Na sua viagem de 1920 por uma Alemanha derrotada na I Guerra Mundial, Aquilino Ribeiro considerava, com uma argúcia que se revelaria possuir um rigor profético, que o desalento alemão da altura, traduzido numa “epidemia de suicídios” teria certamente relação com “a derrota, no que tem de moral para um povo de brios e cioso da sua grandeza (…) Mas acima de tudo, nela prepondera o factor económico” (Alemanha Ensanguentada, Bertrand, p. 158). Em 1928, no ano anterior à tempestade iniciada com o “crash” da bolsa de Nova Iorque, a República de Weimar estava mais pujante e criativa do que nunca. Berlim tinha destronado Paris, como centro cultural da Europa e mesmo do planeta. Os nazis estavam reduzidos à indigência de onde nunca deveriam ter saído: pouco mais de 2% de votos nas eleições para o Parlamento (Reichstag) desse ano. Como se explica que em 1932, os nazis tivessem tido uma votação que lhe permitiu entrar num governo, mesmo que sem maioria absoluta? Os alemães não endoideceram por um vírus qualquer. Eles foram vítimas de três anos de duríssimas políticas de austeridade que colocaram a estabilidade do marco acima das políticas de emprego e de protecção social. O Chanceler conservador Heinrich Brüning, popularmente conhecido como o “Chanceler da fome” (Hunger Kanzler), apoiado pelos sociais-democratas (SPD), consentiu numa deriva que levou a uma decuplicação dos desempregados (mais de 6 milhões no seu auge) e às sopas-da-fome, orquestradas pelas milícias dos SA de Ernst Röhm e Hitler. A situação na Europa de 2019 não é, pelo menos ainda, tão dramática. Mas não poderemos compreender o que se passa em Itália sem as quase 3 décadas de estagnação económica a que a aposta de Roma na integração na presente arquitectura do euro acabou por conduzir. Mesmo o separatismo catalão na sua intensa expressão actual (em 2011, apenas 15% da população apoiava a criação de um Estado independente), e o impressionante espectáculo dos “coletes-amarelos” nas ruas delapidadas de Paris não são possíveis de conceber sem a desmoralização e sentimento de impotência causados pelo “factor económico”, corporizado nas políticas de austeridade.

3. O equívoco entre política europeia e política doméstica. A pobreza do debate na campanha para o Parlamento Europeu não se explica através do levantamento de uma separação artificial ente política europeia e política nacional. O problema reside na perigosa incapacidade dos nossos candidatos a eurodeputado em estabelecer uma correcta articulação entre os dois temas. Dito de outro modo: uma análise política inteligente é aquela que revela como os aspectos cruciais dos assuntos domésticos dependem vitalmente de decisões europeias, passadas ou futuros. Alguns exemplos: o facto de o Parlamento português ter de suportar a chacota de Joe Berardo, ou de o orçamento de Estado continuar a derramar milhares de milhões de euros para o buraco sem fundo da banca, sem pestanejar, em contraste com o alarme nacional causado pelo eventual aumento da despesa permanente em algumas centenas de milhões de euros por ajustamentos salariais, tem uma clara raiz europeia. Sem a total desregulação bancária dos anos 90, exigida pela entrada na eurozona, não teríamos a vertigem da dívida privada que nos afoga, encorajada pela mistura desmesurada entre banca comercial e banca de investimento, que conduziu a Europa à crise de onde ainda não saímos. Do mesmo modo, como bem assinalou o economista Ricardo Cabral em vários artigos recentes no Expresso (27 de Abril) e no Público (13 de Maio), a Agência que gere a nossa dívida pública cometeu um erro desastroso (serão pagos milhares de milhões de juros de dívida a mais do que o necessário) ao apostar na dívida pública de maturidade longa (com taxa de juro superior às emissões a dez anos e mais curtas). Se não o tivesse feito, poderíamos agora adquirir dívida a uma taxa de juro bem inferior a 2%. Contudo, o erro da Agência traduz também o facto de que os Estados da eurozona olham para o BCE como uma espécie de oráculo de Delfos. As suas decisões, tomadas em círculo restrito e numa total independência, estão envoltas em incerteza, como tudo o que é arbitrário.

4. A União Europeia necessita de uma cura de verdade. O que se passa hoje na Europa de 2019, poderia caber bem nas palavras escritas por Ortega y Gasset em 1953, quando a mesquinhez provinciana já se impunha sobre a ambição da integração europeia, apesar do entusiasmo sereno de Jean Monnet: “As nações recolheram-se em casa e calçaram os seus chinelos.” (Las naciones se han metido en casa y se han puesto las zapatillas). Os governos liberais e as instituições europeias fazem campanhas institucionais contra a abstenção. Contudo, o que seria importante seria compreender por que ficam os eleitores em casa, isto é, por que já não entusiasma hoje o ideal europeu. A resposta honesta a essa pergunta ajudaria a perceber como chegámos à tragédia de um Parlamento Europeu – a única instituição que reflecte o projecto de uma Europa cidadã, republicana e federal – em que os únicos eleitores que parece estarem mobilizados são aqueles que pretendem transformar o Parlamento num pandemónio para fomentar a fragmentação, conduzindo a Europa a uma definitiva irrelevância.

Os “europeístas” que consideram ser o medo causado pela expectativa da ruptura do euro, a cola suficiente para manter os cidadãos, mesmo insatisfeitos, dentro da ortodoxia neoliberal que capturou o projecto europeu, deveriam estar mais atentos tanto à nossa história comum, como à condição humana. Para não cair no abismo, a Europa e os europeus precisarão de ter a coragem de olhar, com verdade, para si mesmos. É uma experiência que dói. Mas é a única que ainda nos pode salvar.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado em 22 de Maio 2019, “Quatro Teses. Uma Europa Sitiada a partir de Dentro”, Jornal de Letras, pp. 31-32.

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