Em 28 de dezembro a África do Sul apresentou uma Petição contra o Estado de Israel, junto do Tribunal Internacional de Justiça (não confundir com o Tribunal Penal Internacional). Este Tribunal (ICJ, na sigla inglesa), que funciona em Haia, foi instituído pela Carta da ONU, em 1945, sendo a sua instância judicial mais elevada. Tanto a África do Sul como Israel reconhecem a autoridade deste tribunal. O texto apresentado por Pretória, escrito numa linguagem jurídica precisa e transparente, desenvolve-se em 84 páginas, 151 artigos e 574 notas de rodapé contendo referências e outros documentos de valor probatório. O que é que está em causa? A petição procura sustentar a tese de que a natureza da operação militar de Telavive na Faixa de Gaza e a sua violência indiscriminada configuram uma ação que cai no âmbito da Convenção para a Prevenção e Punição do Genocídio (que entrou em vigor em 1951). Por outras palavras, o que é pedido ao ICJ é que confirme, ou não, se a multidão de provas e factos apresentados na petição podem classificar a ação do Estado de Israel como genocida em relação ao povo palestiniano de Gaza. Não menos importante, é o pedido de “medidas provisórias” (a deliberação sobre este assunto deverá demorar longos anos…), onde se inclui a “suspensão imediata” das ações militares israelitas contra a população civil de Gaza.
Mesmo para quem julgue conhecer o que ocorre em Gaza, as revelações e testemunhos de metódica crueldade, colocados pela petição à disposição dos juízes do ICJ, são chocantes. À data da sua redação, já 85% da população de Gaza estava em fuga, contando-se 21 110 mortos (sendo 7 729 crianças), 7 780 desparecidos (provavelmente mortos sob os escombros), 55 243 feridos e 355 000 habitações destruídas. A operação militar parece pretender não apenas causar o maior dano físico e moral à população, mas também uma destruição radical das infraestruturas (hospitais, escolas, igreja, redes de água e eletricidade, etc.) que torne mais realista o êxodo dos sobreviventes, do que a possibilidade da reconstrução e permanência em Gaza. Entre os mortos contam-se 311 médicos e enfermeiros, 40 membros da proteção civil, 209 professores, 144 funcionários da ONU e 103 jornalistas (um número mais elevado do que aqueles que morreram nos seis anos da II Guerra Mundial!). Mas o mais chocante talvez se encontre entre os artigos 101 e 107. Aí são transcritas as declarações de altos responsáveis do Estado de Israel que o pudor impede de reprodução completa. Apenas alguns exemplos: Avi Dichter (ministro da Agricultura) apela a uma nova Nakba (termo árabe para designar a violenta expulsão da população árabe em 1948). O presidente Isaac Herzog defende a punição coletiva dos palestinianos considerando que “civis inocentes” é um conceito meramente “retórico”. O PM Netanyahu compara a resposta de Israel ao extermínio bíblico que o povo judeu praticou sobre os Amalequitas (1 Samuel 15:3) …
Para além de impedir que o inferno de Gaza desapareça, convenientemente para os seus perpetradores, dos noticiários, a petição do país de Nelson Mandela desnuda o niilismo moral dos governos do nosso “Ocidente”. Enquanto os “valores europeus” ficam silenciosamente na gaveta, Biden e os seus ajudantes mergulham os EUA no aviltante papel de financiador e cúmplice desta descida aos abismos do mal. Se é esta vergonha o que temos a propor ao mundo, o futuro, se, entretanto, não o destruirmos, dispensará o nosso contributo.
Viriato Soromenho-Marques