Perante a patente e repetida incapacidade de uma resposta internacional coordenada e eficaz face à crise ambiental e climática, Portugal deve ter a coragem de preparar-se para cenários onde o primado pertencerá às medidas de adaptação interna, pois, se não o fizemos o futuro poderá tornar-se verdadeiramente hostil.
Façamos um breve exercício prospectivo sobre Portugal 2060. Nessa altura, é muito provável que o PRR e o Acordo de Paris façam apenas parte das amargas recordações de um tempo onde tudo foi feito para ocultar e adocicar a amargura de um futuro que, em 2010 ou em 2020, já tinha os dados lançados. Já seria possível compreender que a encruzilhada não era entre a apoteose tecnológica de um mirífico “crescimento verde” ou a decadência, mas sim entre o colapso abrupto ou um decrescimento organizado e socialmente justo. Quarenta anos de história humana, no actual ritmo de aumento acelerado da pegada ecológica antrópica e consequente agravamento de todas as latitudes da crise ambiental – das alterações climáticas à biodiversidade – obrigam-nos a um exercício temerário. Contudo, julgo que poderemos arriscar algumas características fundamentais que vão enquadrar e condicionar esse futuro.
Antes mesmo de se atingir o auge da desordem nos ecossistemas, poderão ocorrer fenómenos disruptivos, político-militares, que, eventualmente, mergulharão vastas regiões do planeta num estado de simplificação violenta que só poderia ser classificado como barbárie. Algumas incógnitas a ponderar:
A dimensão europeia: não existe qualquer garantia de que a União Europeia sobreviva aos desafios a que não tem sabido responder cabalmente. O ideal para Portugal seria a transformação da UE numa grande democracia federal. Mas, as forças que oscilam entre a pulsão hegemónica e o impulso desagregador são muito fortes.
O directório mundial: será que a China e os EUA se conseguirão entender? Até que ponto conflitos regionais na Ásia, envolvendo provavelmente a Índia e o Paquistão, não poderão alastrar-se e escalar de intensidade? O declínio norte-americano parece ser inevitável. Trump não foi a causa, mas a consequência da decadência dos EUA. Se a paz for mantida, a história continuará, apesar de tudo…Em caso de guerra não saberemos que mundo sobrará depois das armas se calarem.
Certezas. A crise global do ambiente e do clima será, com 95% de probabilidades, muito mais grave do que já é hoje. Mesmo na hipótese remota de os países se entenderem, isso ocorrerá já fora do período em que tal entendimento poderia ter sido mais útil, (uma mudança global coordenada após 1980 teria mudado para melhor a história do futuro). A COP 26 voltou a provar que os objectivos do Acordo de Paris são uma fantasia. Em 2060 habitaremos num planeta com perto de mais 3ºC de temperatura média em relação ao período pré-industrial. Isso significará que viveremos em estado de emergência permanente (incêndios, secas, inundações, ondas de calor, perdas enormes na produção agrícola, stresse e escassez hídrica, grandes desastres humanitários…).
A chave política do futuro chama-se adaptação: os governos municipais, à medida que os Estados vão perdendo nervo e músculo, vão ter uma importância decisiva no futuro. Acredito que a crise ambiental e climática vai inviabilizar muitos Estados. Mesmo na Europa, depois da eventual desagregação da UE, vários países se poderão fragmentar. A crise ambiental (que também será sanitária, como aprendemos com a pandemia de Covid 19) irá inviabilizar a globalização como a conhecemos. O mundo será muito mais insular e regional. Com alguma sorte teremos cooperação regional nas áreas da energia, alimentação e protecção civil (para responder à catástrofe climática), mas nem isso é seguro.
Como não controlamos, a partir de Portugal, as chaves do futuro, é prudente estarmos preparados para o pior cenário. A crise ambiental e climática já não pode ser parada. Por isso, temos de nos adaptar para sobreviver com a dignidade máxima possível nas novas condições. O essencial será a preparação da sociedade para essa adaptação: a) as cidades devem equipar-se para eventos meteorológicos extremos (no isolamento térmico das infra-estruturas, no aumento do efeito de albedo dos telhados do edificado, no robustecimento dos sistemas de abastecimento e escoamento de águas, na regularização das bacias hidrográficas; b) os recursos hídricos devem ser protegidos e bem geridos; c) os portos e as zonas ribeirinhas devem ser defendidos, pelo menos onde tal seja possível, contra a subida do nível médio do mar (a ideia de um novo aeroporto no Montijo é um sinal de indigência intelectual); d) as actividades marítimas tanto no sector das pescas, como na energia e nas biotecnologias, devem contribuir para o esforço de adaptação; e) a agricultura deve ser protegida e estudada a sua melhor resposta à emergência climática; f) a política de reordenamento florestal deve ser decisiva para combater os incêndios florestais; g) as áreas naturais protegidas e os solos agrícolas (que importa defender da pulsão mineira…) são um capital ecológico e um factor de identidade cultural imprescindível para o equilíbrio ambiental e a saúde mental da população; h) a digitalização da economia deverá prosseguir, apostando na formação da população, na sua literacia digital, na qualificação da mão-de-obra activa, na valorização da terceira idade; i) As Forças Armadas deverão ser reformadas numa perspectiva de uso múltiplo, incluindo um serviço obrigatório que capacite os cidadãos para responder ao aumento de situações de emergência.
Se os cenários globais forem mais favoráveis, nada do que tiver sido feito no espírito da preparação para o pior cenário terá sido em vão. Bem pelo contrário. O futuro só será merecido se não acreditarmos nos vendedores de ilusões.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 1 de Dezembro 2021, página 27.