VIDAS PARALELAS QUE SE CRUZARAM

O título deste artigo inspira-se na obra do clássico autor grego, e cidadão do império romano, Plutarco (46-120). Trata-se da célebre série de Vidas Paralelas, 23 biografias duplas, de figuras marcantes da história grega e romana. Foi de Plutarco que me lembrei ao ler o livro que a jornalista Isabel Nery publicou recentemente sobre cinco das personalidades políticas decisivas na revolução aberta pelo 25 de Abril de 1974, e também na consolidação da democracia representativa que se lhe seguiu (Os cinco homens que mudaram Portugal para sempre, D. Quixote, 2022). A autora utiliza, no subtítulo, a formulação de “biografias cruzadas”. E é mesmo disso que se trata, pois, os cinco protagonistas deste livro – ao contrário da distância, no espaço e tempo, entre os heróis de Plutarco -, partilharam, umas vezes em convergência, outras em conflito, os dois anos trepidantes decorridos entre a ação inicial do MFA e a aprovação da Constituição, em 2 de Abril de 1976, não esquecendo os eventos cruciais do 25 de novembro de 1975.

Por ordem de entrada no mundo, os cinco pais-fundadores da III República são: Álvaro Cunhal, Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, António Ramalho Eanes e Diogo Freitas do Amaral. Isabel Nery traça um esboço biográfico de cada uma dessas personalidades, apenas com os traços que a autora reputa de essenciais, fazendo-os depois contracenar no palco dos acontecimentos da história vertiginosa que, todos eles a seu modo, ajudaram a definir. Nuns casos, promovendo, noutros, moderando, ou mesmo travando os processos contraditórios típicos de uma transição atribulada entre regimes. Este livro pode inserir-se no exercício de cidadania que consiste em estudar, num misto de celebração e rememoração crítica, o meio século de democracia que em breve atingiremos. As três qualidades principais que encontro no texto de Isabel Nery são as seguintes. Primeiro, a diversidade e relevância das fontes. Para além dos estudos e testemunhos já publicados, a autora, fazendo jus à sua profissão, recorre a depoimentos de colaboradores dos protagonistas. Isso permite, não apenas fazer a revisão do que se sabe, mas também acrescentar novos dados que enriquecem a compreensão do período, mesmo para os leitores que viveram alguns dos acontecimentos versados na obra. Segunda, o ato de rigorosa e justificada justiça que a inclusão de Ramalho Eanes entre os pais-fundadores do regime democrático significa. Ele foi não só o chefe militar cuja firmeza e moderação ajudou a evitar o abismo da guerra civil, mas também o presidente que, com zelo republicano e espírito de serviço, defendeu a Constituição contra ameaças de vários quadrantes, numa altura em que ela dava os seus primeiros e ainda frágeis passos. Por último, no perfil destas cinco personalidades, Isabel Nery mergulha nas luzes e nas sombras de um tempo português marcado pelo Estado Novo, onde todos eles se tornaram homens e cidadãos. Quatro juristas e um militar, nascidos em geografias diversas, fortemente ligados à herança cultural e moral das suas famílias. Sem esconder as diferenças de visão de mundo e a agressividade ideológica típica de um processo revolucionário, o livro revela como todos eles, nas horas decisivas, deram prioridade ao futuro do país e à segurança dos portugueses, escolhendo o compromisso e a coabitação pacífica, quando a violência parecia inevitável. Por essa marca de grandeza, todos eles irão sobreviver na memória coletiva a que chamamos História.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 7 de janeiro de 2023, p. 10.

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